Stavroguine é um personagem criado por Dostoievski, na obra Os Demônios, para apresentar de modo concreto o homem sem coração. A carta encíclica sobre o Coração de Jesus, publicada pelo Papa Francisco no dia 24 de outubro de 2024, vai recorrer a este personagem para descrever uma situação que existe em nossa sociedade. De acordo com Dostoievski a antropologia do pensamento ocidental está calcada por demais nas categorias da razão e da vontade e esquece o coração. Isto ajuda a entender que vivemos em uma civilização da aparência, da mentira, da dissimulação; voltada para o egoísmo.
A encíclica aproveita para lembrar que o coração é o lugar da sinceridade, não pode se enganar ou dissimular. É o centro do desejo onde se forjam as decisões importantes. É do coração que brotam as perguntas decisivas: quem realmente sou? O que procuro? Não basta ir ao encontro de satisfações superficiais ou representar papéis diante dos outros. O coração se torna o princípio que cria unidade e harmonia no ser e no agir.
O conceito de sociedade líquida é atual, mas a desvalorização do centro mais íntimo do ser humano – o coração – vem de longe. A definição do que é o coração continua imprecisa, não pertence às categorias das ideias claras e distintas. Mas o conhecimento por sua vez, põe dificuldade para o próprio homem. É uma categoria que faz o ser humano tender ao individualismo. Inclina-se a emitir juízo sobre tudo e sobre todos. Não favorece o encontro com o outro. Não favorece o encontro pessoal consigo mesmo em que a única realidade que unifica é o amor.
É necessário que todas as ações sejam colocadas sob a unificação do coração. A agressividade e os desejos obsessivos sejam acalmados no bem maior do coração e na força que ele tem contra os males. A inteligência e a vontade também sejam colocadas ao seu serviço, saboreando as verdades ao invés de querer dominar. Quando se conhece com o coração, se conhece melhor e mais plenamente. Ele conduz ao amor que é a realidade mais íntima. Como dizia Pascal: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Pode-se dizer que Stavroguine é a encarnação do mal. Não possui coração, seu espírito é vazio e frio. Seu corpo se intoxica de indolência e sensualidade animalesca. Não consegue ir até os outros homens, nem estes podem chegar até ele. Só o coração pode acolher e dar refúgio. A interioridade é a esfera e o ato do coração. Stavroguine se encontra muito longe, muito afastado de si. Nele se perde o significado de expressões como: partir do coração, agir com o coração, amadurecer, curar o coração.
Por Dom Wilson Tadeu Jönck, SCJ
Arcebispo Metropolitano de Florianópolis
Artigo publicado no Jornal da Arquidiocese de novembro de 2024, edição nº 317.