O amor escandaloso de Deus – Por Pe. José Artulino Besen

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O amor escandaloso de Deus – Por Pe. José Artulino Besen

O AMOR ESCANDALOSO DE DEUS

 

Jubileu dos padres da Arquidiocese de Florianópolis

Santuário de Azambuja, 2 de junho de 2016

 

DSC_9680Neste Ano Santo da Misericórdia, Jubileu de graça e de reconciliação, recebemos a imerecida graça de podermos nos colocar diante do Deus Pai da Misericórdia que é o Senhor, e diante do homem e da mulher, filhos da Misericórdia gerados no Espírito Santo e regenerados pela Cruz do Senhor. O Ano da Graça não é um período de regeneração delimitado pelo começo e pelo fim de um ano na cronologia da história, mas sim, é um Ano mergulhado no Hoje de Deus, no mistério da salvação decidido por Deus desde toda a eternidade, pois o plano da criação inclui o plano da salvação (Rm 16,25; Ef 3,9; Cl 1,26). Ao proclamar o Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir, na sinagoga de Cafarnaum, Jesus une o Antigo Testamento (cf. Isaías 61,1ss) ao Novo (cf. Lucas 4,18-19), sem delimitar nem povo nem tempo. Assim, o Ano Santo é ocasião propícia para tomarmos consciência do Ano da Graça, e viver na alegria da misericórdia sempre oferecida a cada um de nós.

Gostaria de propor breve reflexão, confrontando o ato da criação com o ato da redenção: o homem e a mulher foram criados à imagem de Deus e segundo a sua semelhança (Gn 1,26). Nós somos à imagem e semelhança de Deus, e Deus é à nossa imagem e semelhança. A primeira semelhança se refere ao ato da criação e a segunda, ao ato da encarnação. É bastante difícil aceitarmos que o Deus encarnado seja à nossa imagem e semelhança, parecendo-nos uma afirmação blasfema ou jogo literário. Na realidade, o dogma cristão inclui essa verdade quando afirma que o Filho eterno se encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem, homem-Deus, igual a nós em tudo, exceto no pecado.

Em Cristo, Deus assume a condição humana, e nós recuperamos a semelhança divina. Deus vivencia os sentimentos humanos e, ao mesmo tempo, oferece-nos a graça de vivermos os sentimentos divinos: “haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no Cristo Jesus” (Fl 2, 5). É o caminho da humanização divina e da divinização humana realizada de modo exemplar em Maria: quando o Verbo se fez carne o ventre de Nossa Senhora foi divinizado pela habitação, nele, da Trindade e a carne humana e a natureza divina foram unidas. Na Encarnação, o ventre de Maria é o Sacrário onde se acontece a história da salvação.

Essa comunhão-comunicação dá-se no amor: ‘Sede misericordiosos como o Pai’ (cfr. Lc 6, 36), lema do Jubileu da Misericórdia: o Pai é o Misericordioso e nós recebemos o mandamento de vivermos a mesma misericórdia que Jesus revela nas parábolas da ovelha perdida e encontrada, da dracma perdida e encontrada, do filho perdido e encontrado (Lc 15), narrando quem é e como age o Pai. Com sua vida humano-divina, Cristo é o narrador do Pai que quer encontrar a humanidade plenificada em seu amor.

Mais do que pensarmos em indulgência, porta santa, o Jubileu nos propõe conhecermos nosso Deus, pois, antes de tudo o Jubileu é uma questão de Deus: dar a Deus o que é de Deus, e corrigir as distorções da imagem divina que nos foram transmitidas na educação religiosa e familiar.

O desafio é grande no Ocidente secularizado: reabrir, em termos existenciais, a questão de Deus, quem é Deus, seu rosto, num mundo que age como se Deus não existisse, e isso porque não reconhece mais aquele que é o Misericordioso. A secularização priva-nos da paternidade divina, nos abandona na aridez de uma vida sem espiritualidade que também nos deixa sem o calor da fraternidade, pois são irmãos os que possuem o mesmo pai, o Pai. Também a fé cristã se deforma na influência dessa secularização quando insiste na ética, na organização pastoral, na produtividade, atividades tão amadas em nosso tempo, mas que nos privam da alegria do improviso da graça, da inesperada ação divina. Deixamos de ser pastores para sermos agentes de pastoral. Deixamos de procurar e encontrar a ovelha, a dracma, o filho.

A Misericórdia se expressa no Encontro de Deus conosco, e se propaga noutro Encontro: com todos aqueles que vivem nas periferias existenciais. Misericórdia e Encontro são categorias fundamentais na antropologia de Papa Bergoglio e definem a ação pastoral e missionária da Igreja.

A misericórdia escandalosa de Deus

Há imensa dignidade em cada um de nós, sem nenhum merecimento: somos o centro aonde converge o amor divino e recebemos o dom inestimável de poder amar, de sermos divinos pelo ato de amar.

Deus é amor, o amor é divino: nós somos feitos à imagem e semelhança de Deus e recuperamos nossa semelhança pela conversão ao amor. E isso não é pesado, não é um mandamento duro: somos amados primeiro. Nosso amor é somente resposta. “O Senhor não olha tanto a grandeza das nossas obras. Olha mais o amor com que são feitas” (Santa Teresa d’Ávila).

Por diversas vezes, Francisco tem-se referido ao capuchinho Frei Luiz Dli, apreciado confessor em Buenos Aires. Escrupuloso, quando receia ter sido excessivamente indulgente com o pecador, põe-se diante do sacrário e diz: “Jesus, perdoa-me porque perdoei demais. Mas, foste tu quem deu o mau exemplo!”. Frei Luiz reconhece que alguns pecadores deveriam primeiro receber uma boa penitência, e depois a absolvição. Reconhece, contudo, que a misericórdia do Senhor é escandalosa mesmo, ilimitada. Dele provém o perdão sem condições, prazos, admoestações, também porque o confessionário não é uma “câmara de tortura”,  nas palavras de Francisco, mas um “hospital de campanha” onde são tratadas as vítimas da guerra decretada pelo mal: se fizermos muita exigência, acabarão morrendo. Recordo aqui o Cura d’Ars que, diante de penitentes mais graves, declarava que ele mesmo faria a penitência. Nossa penitência é aceitar o amor!

 “A misericórdia é algo de escandaloso e até loucura”, escreveu Enzo Bianchi, prior da comunidade monástica de Bose, em 15 de maio de 2016 (cf. Enzo Bianchi: L’amore scandaloso di Dio – San Paolo – 2016).

Nas suas palavras, nem os homens religiosos entenderam de verdade a misericórdia de Deus. Na história da Igreja, a misericórdia foi interpretada exatamente ao contrário do que Jesus pôs em prática, e citamos como exemplo sua atitude diante da mulher adúltera que os escribas e fariseus queriam apedrejar, a quem Jesus primeiro perdoa e depois pede a conversão. E podemos contemplar ainda mais claramente o grande mistério deste amor dirigindo o olhar para Jesus crucificado. Enquanto, inocente, está para morrer por nós, pecadores, suplica ao Pai: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). É na cruz que o pobrezinho Jesus, todo ferido pela violência, apresenta à misericórdia do Pai o pecado do mundo: e o pecado de todos, os meus, os teus, os nossos foram perdoados com antecedência.

A misericórdia é algo de escandaloso, e até loucura na lógica humana, repito. Sentido paradoxal da misericórdia: não é o arrependimento que cria o perdão, “mas o perdão que nos é dado provoca o arrependimento”. O perdão instaura o cenário do arrependimento e permite ao homem de recomeçar.

Para entendermos de verdade o sentido do perdão, devemos ir à Escritura e ler a afirmação revolucionária do profeta Oséias, que coloca na boca de Deus: “Eu quero misericórdia e não sacrifícios, o conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6), e o próprio Filho de Deus declara: Quero misericórdia e não sacrifícios (Mt 9,13). É radicalmente novo colocar juntos misericórdia e conhecimento de Deus. Significa que podemos conhecer a Deus somente numa experiência passiva de misericórdia, de amor e de reconciliação. Caso contrário, Deus se torna um ídolo que fabricamos sob medida, o produto de nossas projeções autoritárias que fazem ameaçar com castigos o pobre pecador já fragilizado. O inferno, para o homem, para cada um de nós, é não sermos perdoados por ninguém.

A evolução do rito penitencial, com a imposição de largas e longas penitências antes de proclamar o perdão foi uma das causas da exigência de sacrifícios para ser declarado perdoado, mas isso foi causado pelo distanciamento da prática de Jesus, que veio para os pecadores e não para os justos: a inversão levou à convicção de que somente se participaria da comunhão eclesial após pagar pelos pecados, levando a crer que Jesus veio para os justos (cf. Mt 5,23).

Na verdade, o sacrifício de Jesus na cruz liberta o homem do sacrifício, afirma Bianchi. O Cristianismo inclui uma concepção antissacrifical: Jesus é uma possibilidade de libertação do sacrifício, da abnegação, da mortificação. Jesus liberta a lei da própria lei, com ele termina a concepção patibular, retributiva e justicialista da lei. A justiça de Deus que Jesus encarna implica a exceção, a possibilidade do perdão = a misericórdia.

Pode-se ver isso na história da adúltera ou do filho pródigo (Jo 8,1-11; Lc 15,11-32): o filho não retorna à casa porque estivesse arrependido, mas porque tinha fome, tanto que pede para ser tratado como um dos empregados. Mas, o pai não pede explicações, logo o veste e prepara a festa. O perdão do pai precede o arrependimento do filho. Este é o escândalo. A adúltera se refugia junto a Jesus para não ser apedrejada, e recebe o perdão sem pedir, e depois o convite à mudança de vida.

Escreve Enzo Bianchi: “o sacrifício é comum a todas as religiões e chega a gerar violência. Se o sacrifício é mortificação, não tem nada a fazer com a vida cristã. Se, ao contrário, é renunciar a algo pelo outro, então todos os dias fazemos sacrifícios”. A espiritualidade cristã oferece a unidade jejum-esmola-oração para nos libertar do sacrifício pelo sacrifício, fazendo com que o não consumido pelo jejum seja esmola para o próximo. Assim, o sacrifício cristão supõe uma privação pessoal de tempo, dinheiro e alimento doados ao pobre e ao doente. Evidente que não se deve confundir o sacrifício voluntário com os sacrifícios que nascem de nossa condição de fragilidade, como doenças e privações de coisas e pessoas.

“O sacrifício torna-se patológico quando gera um prazer no sujeito e se torna critério de superioridade moral em confronto com os outros: eu jejuo, eu me mortifico, eu faço penitência. Esse é o risco sempre presente na psicologia do homem religioso. Jesus Cristo morre na Cruz e completa o último, grande sacrifício que definitivamente liberta o homem do sacrifício” (Recalcati, psicanalista italiano). 

A reconciliação ou, Deus oferece o perdão

 Deus nunca deixou de oferecer o seu perdão aos homens: a sua misericórdia faz-se sentir de geração em geração (cf. Sl 100,5; 106). Muitas vezes pensamos que os nossos pecados afastam o Senhor de nós: na realidade, pecando, somos nós que nos afastamos dele que, ao ver-nos em perigo, vem-nos procurar ainda mais, como um bom pastor que não se contenta enquanto não encontra a ovelha perdida (cf. Lc 15,4-6). Ele reconstrói a ponte que nos une ao Pai e permite reencontrar a dignidade de filhos. Mas, por que é possível que nos escondamos do Senhor, a ponto dele precisar nos procurar?  Adão, onde estás?, uma pergunta tão atual! A resposta reside no ato criador de Deus, quando nos fez à sua imagem e semelhança. Ser à imagem e semelhança inclui, por analogia, a própria condição divina com a posse da liberdade: o pecado não nos privou da imagem divina e o mistério da salvação é recuperarmos a semelhança com Deus, segundo a doutrina de Irineu de Lyon (cf. Adversus Haereses), fonte da soteriologia patrística.

O pecado é deveras uma expressão de recusa do amor divino e tem como consequência nos fecharmos em nós mesmos, na ilusão de que encontramos mais liberdade e autonomia, conforme a tentação original, mas, longe de Deus, já não temos uma meta, e de peregrinos neste mundo tornamo-nos “errantes”.

“Reconciliai-vos com Deus!” (2Cor 5, 20): aceitemos o convite a deixar-nos reconciliar com Deus, para nos tornarmos novas criaturas e poder irradiar sua misericórdia entre os irmãos, no meio do povo.

Não necessitamos ficar abismados pelos santos que deram a vida pelo próximo, pelos jovens que se consagram à missão, por aqueles que empenham toda a vida no serviço ao próximo, à família: sentem-se amados e não conseguem se fechar em si, também se dilatam no amor.

Tudo se faz amor quando meditamos no amor pessoal de Deus por cada um de nós: “Tu és Trindade criadora e eu sou tua criatura. Tu estás enamorado de tua criatura”, declarava, cheia de encanto e maravilha, Santa Catarina de Siena (1347-1380). Ela, a analfabeta doutora da Igreja, sentia a paixão divina por ela, caso contrário, não a procuraria sem lhe dar sossego. É essa, igualmente, nossa história: Deus se enamora de nós, a cada dia com mais intensidade. Nunca esqueçamos: Jesus se deixa “contaminar” pelos pecadores, ele se contamina pelos nossos pecados.

O Evangelho é a boa nova da Misericórdia, e não o anúncio da lei esterilizante que sucumbe à tentação de nos julgarmos avalistas do amor de Deus. É o Evangelho da misericórdia que transforma, que faz entrar no coração de Deus, que nos torna capazes de perdoar e olhar para o mundo com mais bondade.

E qual é a resposta única que Deus nos pede? Papa Francisco nô-la oferece meditando a parábola do homem rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31): “Ignorar o pobre é desprezar Deus porque, se não abro a porta de meu coração ao pobre, ela permanece fechada também para Deus, e isso é terrível”. Quantas vezes disfarçamos nosso olhar e passos para darmos a impressão de que não vemos o pobre, que ele não existe: a misericórdia de Deus por nós está ligada à nossa misericórdia pelo próximo.

Por: Pe. José Artulino Besen

 

 

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