Chegamos aos três últimos salmos “das subidas”, ou seja, das peregrinações a Jerusalém. O salmo 132 é o mais longo entre esses quinze salmos, e se distingue por indicações históricas e litúrgicas características. A situação histórica aludida é a transferência da Arca, de onde estava, na casa de Obededom, à cidade de Davi (2Sm 6) e, mais tarde, da cidade de Davi ao Templo construído por Salomão (1Rs 8). O salmo fixa-se na primeira transferência, projetando-a para a segunda e definitiva. Entre as duas transferências, um fato importante: a promessa de Deus a Davi, segundo o profeta Natã (2Sm 7), ligando templo e dinastia, templo e cidade, Sião e Jerusalém.
A procissão representava dramaticamente essa transferência, talvez no aniversário da dedicação do Templo. A arca fora previamente levada a um lugar que representava a casa de Cariat Jearim, a qual havia sido, por muitos anos, sua humilde morada. Os sacerdotes, o rei e o povo vão agora reconduzi-la solenemente. Ao saírem do Templo, pedem que Deus abençoe o “ungido” reinante, em atenção ao juramento e aos generosos esforços de Davi, seu antepassado, para preparar a Deus uma digna mansão. Enquanto voltam ao Templo, rezam de novo pelo rei, recordando o juramento com que Deus retribuiu ao juramento de Davi (vv.11-12). Na chegada, um sacerdote anuncia que o próprio Senhor escolheu este lugar e que prometeu dali abençoar os sacerdotes e o povo, incluindo especialmente os pobres, e o rei.
SALMO 132 (131) – A PROMESSA A DAVI
A primeira parte do salmo, vv. 1-10, caracteriza-se por petições em favor de Davi, cujo propósito em forma de juramento é relembrado (vv.2-5), e petições em favor do povo, “por amor de Davi”, na cerimônia de transferência da arca (vv.6-10), com verbos na primeira pessoa do plural. A segunda parte, vv. 11-18, traz o juramento de resposta do Senhor, em duas partes, para a dinastia e para a cidade, com o verbo na primeira pessoa do singular.
Lembra-te de Davi
- [Cântico das subidas] Lembra-te, Senhor, de Davi, / de todo o seu empenho,
- Como ele jurou ao Senhor, / ao Poderoso de Jacó fez este voto:
- “Não entrarei sob o teto de minha casa, / não subirei ao leito do meu repouso,
- Não darei sono a meus olhos / nem descanso às minhas pálpebras,
- Enquanto não achar um lugar para o Senhor / uma morada
para o Poderoso de Jacó”.
O salmista, que não se identifica, apela à memória de Deus, aqui explicitamente em favor de Davi, por causa de “de todo o seu empenho” para construir uma digna morada para o Senhor. A urgência do empenho é explicitada fortemente por Davi: não entrará em casa, não “subirá” para a cama, não conciliará o sono, não fechará as pálpebras… O título “Poderoso de Jacó” é antigo, empregado no livro do Gênesis (Gn 49,24) e também em Isaías: 1,24; 49,26; 60,16.
Entremos em sua tenda
- Sim, ouvimos falar dela em Éfrata, / nós a encontramos nos campos de Jaar.
- Entremos em sua tenda, / prostremo-nos ante o estrado de seus pés.
Com indicações litúrgico-processionais, descreve-se a movimentação: de Jerusalém para Éfrata, região de Belém, cidade de Davi, e “campos de Jaar”, região circunvizinha. O “estrado dos pés” do Senhor é a própria Arca, diante da qual os peregrinos se prostram em adoração, antes de formularem seus pedidos.
Levanta-te, Senhor!
- Levanta-te, Senhor, para o lugar de teu repouso, / tu, e a arca do teu poder.
- Teus sacerdotes se revistam de justiça / e teus fieis exultem de alegria.
- Por amor de Davi, teu servo, / não rejeites o rosto do teu ungido.
O pedido para que o Senhor “se levante” e se dirija, com sua Arca “poderosa”, para o novo domicílio, retoma a tradição registrada em Nm 10,35: “Quando a Arca se punha em marcha, Moisés dizia: Levanta-te, Senhor!” A seguir, depois de focalizar os sacerdotes e os “fieis”, há uma súplica especial pelo “Ungido” reinante, em atenção a Davi.
O Senhor jurou
- O Senhor jurou a Davi / e não retirará a sua palavra: / “É o fruto de tuas
entranhas / que vou colocar no teu trono!
- Se teus filhos guardarem minha aliança / e os preceitos que lhes ensinarei,/
também os filhos deles para sempre / se sentarão no teu trono”.
Como no Sl 110, temos aqui um juramento solene, caracterizado como irrevogável, beneficiando o filho de Davi – Salomão – e, condicionadamente, os filhos de seus filhos. Acontece que eles não “guardaram a Aliança”, fazendo com que o juramento se cumprisse, na interpretação cristã, num outro “filho de Davi”, o Senhor Jesus.
Escolheu Sião
- Sim, o Senhor escolheu Sião, / Ele a quis para sua morada:
- “Este é o meu repouso para sempre: / aqui habitarei, pois eu a escolhi.
- Abençoarei todas as suas provisões, / e saciarei de pão os seus pobres.
- Revestirei de salvação seus sacerdotes / e exultarão de alegria os seus fieis.
A segunda parte do juramento focaliza a colina do Templo, Sião, escolhida como residência perpétua do Senhor e, por isso, abençoada com provisões e pão abundante, que não faltará para os pobres. O v. 16 repete o que foi dito no v. 9.
O poder e a lâmpada
- Lá farei germinar o poder de Davi, / vou preparar
uma lâmpada para meu ungido.
- Cobrirei de vergonha seus inimigos, / mas sobre ele brilhará o seu diadema”.
Os dois versículos finais são novamente dedicados a Davi, cujo poder floresce e cuja lâmpada não se extingue. Mais ainda: por contraste, seus inimigos são derrotados, enquanto sua coroa rebrilha. O Novo Testamento reconhece o sentido cristológico deste salmo, citando-o duas vezes: em At 2,29 e 7,45-47.
SALMO 133 (132) – ALEGRIA DA UNIDADE
Chegados quase ao final dos “cânticos das subidas”, encontramos este brevíssimo salmo que faz o elogio da concórdia fraterna. O salmista, empolgado com o ambiente de paz que ele encontra em Jerusalém, exalta o perfume e o frescor da convivência humana na capital do seu povo, enriquecida pelos dons divinos da “bênção” e da “vida”.
Como é bom!
- [Cântico das subidas. De Davi] Como é bom, como é agradável
/ os irmãos morarem juntos!
A exclamação inicial soa como uma bem-aventurança: “felizes os irmãos que moram juntos, vivendo unidos”. Que “irmãos”? O salmista não restringe o sentido, mas deixa-o aberto para os “irmãos” ao longo da história: irmãos de família, irmãos de pátria, de fé… irmãos na condição humana, porque filhos do mesmo Pai (cf Mt 23,8).
Como o óleo precioso
- É como óleo precioso sobre a cabeça, / que escorre pela barba,
pela barba de Aarão , e desce até a orla de seu manto.
A primeira comparação inspira-se no óleo aromático da unção do sumo sacerdote, de que fala Ex 30,22-33. Óleo exclusivo, de perfume inebriante, que unge não só a cabeça, mas escorre “pela barba” e pelo manto: do sumo sacerdote chega até o povo, ninguém ficando excluído.
Como o orvalho
- É como o orvalho do Hermon, / descendo sobre os montes de Sião.
Pois é lá que o Senhor dá a bênção / e a vida para sempre.
A segunda comparação também fala de descida, do orvalho das encostas da mais alta montanha de Israel, chegando até os montes de Sião, na Judeia. Seus efeitos de fecundidade e frescor são o símbolo da bênção e da vida que vêm do próprio Senhor. Assim é o amor fraterno. Tudo isso é a convivência concorde de irmãos.
SALMO 134 (133) – BENDIZEI O SENHOR!
Último dos “cânticos das subidas”, este salmo, depois do Sl 117, é o mais breve do saltério. É um ritual de despedida, constituído do diálogo entre os que se despedem, para descansar à noite em suas casas, delegando o ofício do louvor aos sacerdotes de plantão. Estes, por sua vez, retribuem, pronunciando a fórmula da bênção.
Louvor perene, dia e noite
- [Cântico das subidas] E agora,bendizei o Senhor, / vós todos, servos do Senhor:
Vós que permaneceis na casa do Senhor / durante a noite.
- Levantai as mãos para o Santuário / e bendizei o Senhor.
Os dois versículos começam e terminam com o invitatório “Bendizei o Senhor”, dirigido aos “servos do Senhor” que permanecem à noite “na casa do Senhor”.
Chama a atenção a repetição, por quatro vezes, do Nome sagrado, e o gesto de “levantar as mãos” para o Santuário, como expressão corporal do “bendizer”.
O Senhor te abençoe!
- – De Sião te abençoe o Senhor, / que fez o céu e a terra.
O mesmo verbo hebraico significa “bendizer” e “abençoar”. Os sacerdotes, convidados a “bendizer” o Senhor, no Templo, respondem invocando, sobre cada um dos fieis que se despedem, a “bênção” criadora d’Aquele que “fez o céu e a terra”.
Pe. Ney Brasil Pereira
Professor emérito de Exegese Bíblica do ITESC
email: [email protected]
Para refletir: 1) Como se distingue o Sl 132? Qual a situação histórica a que alude?
2) Como se entende o juramento irrevogável a Davi?
3) Quais os frutos da escolha de Sião como “morada” do Senhor?
4) O que celebra o Sl 133? Como entende você as duas comparações?
5) Como se caracteriza o Sl 134, último entre os “cânticos das subidas”?
Artigo publicado na edição de dezembro/2016, nº 230, do Jornal da Arquidiocese