Conhecendo o livro dos Salmos – 119 (118) VI – Por Pe. Ney Brasil

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Conhecendo o livro dos Salmos – 119 (118) VI – Por Pe. Ney Brasil

SALMO 119(118) – O SALMO DA LEI (VI)

 

           

Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.
Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.

Chegamos ao último bloco das 22 estrofes do salmo. São as três últimas, novamente cada uma com oito versículos, e cada versículo começando com a mesma letra hebraica. No total, são 176 versículos. Sendo tantos, alguém poderia pensar que neles o salmista apresenta uma síntese da teologia bíblica. Entretanto, não é assim.

            Por exemplo, o longo salmo nada diz da história do seu povo: nada do Êxodo, nada  da Aliança no Sinai, nada do Templo, nem dos sacrifícios nem do culto. Deus aí não aparece como rei, nem há rei humano. A lei de Deus, que é o grande tema do salmo, estava firmemente vinculada à Aliança e aos relatos de Moisés: o salmista não faz referência alguma à Aliança. Ele não aclama a santidade de Deus, o Deus “santo”, atributo relativamente frequente no saltério. Não  recorda nem canta a obra criadora, e nada lembra do cuidado devido aos pobres e fracos, tantas vezes mencionado em outros salmos e nos Provérbios.

            Por que esse silêncio do salmista sobre tantos pontos importantes? Talvez, foi para levar o leitor a concentrar-se no único tema que lhe domina a atenção, isto é, a Lei. Mas aí, novamente a pergunta: como conciliar Lei e Evangelho? Diante da lei de Moisés, o Senhor Jesus propõe seus oito valores ou bem-aventuranças, em Mt 5,3-10. E, em vez de muitos mandamentos (e “decretos” e “normas” e “preceitos” e “estatutos”), Ele nos dá “o seu” mandamento, antigo e novo, o do amor fraterno (Jo 13,34). Pois bem. Esta nossa concentração no essencial não ficará enfraquecida, pelo contrário, será fortalecida, desde que, criteriosamente, e à luz do Evangelho, saibamos aplicar-lhe as múltiplas expressões (em 176 versículos!) do zelo e entusiasmo deste salmista pela Lei.

 

20ª estrofe (119, 153-160) – Letra RESH – VER

 

Vê minha humilhação

  1. Vê minha humilhação e liberta-me, / porque não esqueci tua Lei.
  2. Julga minha causa e resgata-me, / segundo tua palavra, faze-me viver!

            Esta estrofe começa com um apelo do salmista humilhado, que protesta “não ter esquecido” a Lei. Por isso mesmo, tem coragem de pedir que o Senhor, tendo  “visto” sua humilhação, “julgue” a sua causa, resgate-o, e o mantenha em vida.

Tuas misericórdias

  1. A salvação está longe dos ímpios, / pois não se importam com teus estatutos.
  2. Tuas misericórdias são grandes, Senhor! / Segundo teus julgamentos,

 faz-me viver!

            Apesar de “grandes”, as misericórdias do Senhor não alcançam os “ímpios”, porque e enquanto “não se importam” com os divinos “estatutos”. O salmista, porém, exatamente porque “se importa com os mandamentos”, confia em ter a vida preservada, repetindo o pedido do v. 154.

Faz-me viver

  1. São muitos os que me perseguem e me afligem, / mas não me desviei

 dos teus testemunhos.

  1. Vi os rebeldes e senti desgosto, / porque não guardam as tuas palavras.
  2. Vê, porém, como eu amo teus preceitos, Senhor! / Segundo a tua misericórdia,

 faz-me viver!

            Pela terceira vez nesta estrofe (vv. 154, 156, 159) o salmista suplica que o Senhor o mantenha em vida, lhe conserve este que é o mais precioso dos dons: viver! E contrapõe-se aos que o perseguem e o afligem, dos quais “sente desgosto” porque “não guardam” as divinas palavras. Ele, porém, porque “ama” os preceitos do Senhor, confia na sua “misericórdia” e, com esta confiança, pede garantia de vida.

Verdade e Justiça

  1. Princípio das tuas palavras é a verdade, / são duradouros os julgamentos

da tua justiça.

            Neste denso versículo, o salmista exalta dois atributos divinos fundamentais: a “Verdade” e a “Justiça”. Quanto à Verdade, afirma que ela é o “princípio”, “fundamento”, “fonte”, das palavras de Deus. Quanto à divina Justiça, assegura que seus “julgamentos” são “duradouros”, isto é, eternos.

 

21ª estrofe (119,161-168) – Letra Sin e Shin – PAZ

 

O único temor

  1. Poderosos me perseguem sem motivo, / mas meu coração só teme tuas palavras.
  2. Alegro-me com a tua promessa, / como quem encontra grandes despojos.
  3. Odeio e detesto a mentira, / mas amo a tua lei.

            A perseguição dos “poderosos” não abala o salmista, que “só teme” as palavras divinas. Em contraste, a “promessa” de Deus lhe traz mais alegria do que a dos que encontram despojos. De fato, é porque “ama” a Lei, que ele “odeia e detesta” a mentira.

Sete vezes por dia

  1. Sete vezes por dia eu te louvo, / pelos julgamentos da tua justiça.

            Se “o justo cai sete vezes, embora logo se levante” (Pr 24,16), o salmista se dedica, “sete vezes por dia”, a louvar o Senhor, exaltando-o pelos “julgamentos da sua justiça”. Esses “sete” momentos de louvor foram de certo modo acolhidos pelos monges, nas sete “horas” diárias da sua oração conventual: matinas, laudes, terça, sexta, nona, vésperas, completas.

Muita paz

  1. Muita paz têm os que amam tua lei: / no seu caminho não há tropeço.

            “Paz”, em hebraico, shâlôm, não é apenas ausência de guerra –  o que já seria muito num mundo sempre em guerras –  mas “felicidade”, “plenitude”, bem-estar. O salmista proclama que essa “paz” é fruto da observância da Lei. E o “caminho”, isto é, a vida, dos que amam a Lei, é seguro e sem “pedras de tropeço”.

Esperança ativa

  1. Aguardo tua salvação, Senhor, / enquanto ponho em prática teus mandamentos.
  2. Minha alma guarda teus testemunhos / e muito os ama.
  3. Observo teus preceitos e decretos / e diante de ti estão todos os meus caminhos.

            A esperança do salmista não é ociosa. Enquanto “aguarda” a salvação, ele “põe em prática” os mandamentos, isto é, eles os cumpre. Os “testemunhos”, conservados no coração e “muito amados” (v.167), são “observados” com leal sinceridade, de tal modo que ele nada tem a esconder: “todos os seus caminhos” estão descobertos, patentes, diante do Senhor

 

22ª estrofe (119,169-176) – Letra TAU – LOUVOR E SÚPLICA

 

Meu grito

  1. Chegue meu clamor a ti, Senhor,/ dá-me entendimento, segundo a tua palavra.
  2. Chegue à tua presença minha súplica, / livra-me segundo a tua promessa.

            Sem identificar o motivo da aflição, o salmista insiste em que seu “clamor” chegue à presença de Deus, pedindo-lhe o “entendimento” – certamente para compreender o que está acontecendo – e a libertação de algum perigo.

Meus lábios

  1. Que meus lábios exprimam teu louvor, / pois me ensinas teus estatutos.
  2. Minha língua cante a tua promessa, / pois todos os teus mandamentos são justos.

            Surpreende, após súplica tão intensa nos dois versículos anteriores, a convocação dos “lábios” e da “língua” para o louvor. O salmista reconhece ter sido “ensinado” por Deus, e reconhece que seus mandamentos são “justos”.

Tua mão

  1. Venha em meu auxílio a tua mão, / pois escolhi teus preceitos.
  2. Desejo a tua salvação, Senhor, / e a tua lei é o meu prazer.

            Agora, é a “mão” do Senhor que é invocada, para que Ele venha confirmar o salmista na opção feita, e lhe garanta a salvação. Quanto à Lei como o “prazer” do salmista, é uma afirmação já feita várias vezes ao longo do salmo: cf vv. 16, 24, 47, 77,  92, 111, 143.

Minha alma

  1. Minha alma possa viver para louvar-te, / e os teus julgamentos me auxiliem.

            Nova súplica pela vida, a vida física, pois, na concepção do Antigo Testamento, só quem está vivo é que pode louvar (cf Ezequias, em Is 38,19). Para isso, porém, o salmista conta com a ajuda dos divinos “julgamentos”.

Ovelha desgarrada

  1. Perdi-me como ovelha desgarrada: / vem buscar teu servo, pois não esqueci

teus mandamentos.

            Este último versículo é muito estranho, após tantos protestos de observância e fidelidade nas vinte e duas estrofes do longo salmo. Como é que o salmista pode sentir-se qual “ovelha desgarrada”? E como pode pedir que o Senhor “venha buscá-lo”, se ele “não esqueceu” os mandamentos? Mas assim é. No que para nós possa parecer um exagero de modéstia, temos aqui a confissão humilde de quem sinceramente crê que, apesar de tudo,  poderia ter sido mais fiel, mais observante, do que foi. Para nós, à luz do Evangelho, qual é a “observância” que o Senhor quer de nós?

Pe. Ney Brasil Pereira

Professor emérito de Exegese Bíblica da FACASC

Email: [email protected]

Para refletir: 1) Por que é que, num salmo tão longo, seu autor omite muitos temas bíblicos importantes?

2) Por que, apesar de “grandes”, as misericórdias do Senhor não alcançam os “ímpios”?  3) Que significa a palavra “paz”? e a paz é fruto de quê?

4) É ociosa a esperança do salmista? De que modo ele a torna ativa?

5) Como entender o último versículo, no qual o salmista se compara a uma “ovelha desgarrada”?

 Por: Pe. Ney Brasil Pereira – Professor Emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC

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