Salmo 107 (106): O Senhor ouve e liberta
Este salmo é um grande cântico de ação de graças, que começa com breve introdução, sintética (vv. 1-3) e, depois de apresentar quatro quadros de situações típicas, cada um deles com dois refrões (vv. 4—32), termina com um apêndice, de estilo diverso e sem refrões (vv. 33-42) e, por último, uma exortação sapiencial (v.42). Os refrões, para serem destacados, são aqui impressos em negrito. Quanto aos “quatro” quadros, notar a totalidade expressa nesse número, a partir dos quatro pontos cardeais, aliás mencionados no v. 3.
A palavra que define quem é Deus neste salmo é o verbo “redimir”, ou seja, “resgatar”. Todas as ações divinas aqui descritas podem ser resumidas nesta afirmação: Deus é o redentor do seu povo. Caminhando junto, sendo seu aliado e fazendo a história com Israel, Deus mostrou plenamente quem Ele é. E o mostrou ouvindo o clamor e libertando, características fundamentais do Deus da Aliança. Os quatro primeiros momentos do salmo apresentam o esquema do Êxodo: angústia, clamor, libertação, agradecimento. E Deus é aquele que pode inverter, e inverte, as situações do seu povo (vv.33-41)
O salmista se dirige aos “resgatados”, do Exílio, e aos “reunidos”, da Diáspora, ou seja, da dispersão. São duas situações que podem sobrepor-se e, também, separar-se. Coincidem, porém, no retorno do Exílio.
Dai graças!
- ALELUIA! Dai graças ao Senhor, porque ele é bom, / porque eterno
é seu amor!
- Assim digam os resgatados do Senhor, / os que Ele redimiu da mão do opressor,
- e que reuniu de vários países, / do oriente e do ocidente, do norte e do sul.
O salmo começa com a fórmula litúrgica dos salmos 106, 118 e 136. A segunda motivação – eterno é seu amor – é o estribilho do Sl 136. Os quatro pontos cardeais, mencionados também no II Isaías (Is 43,5-6), alargam o horizonte da libertação, inicialmente partindo de Babilônia.
Na solidão do deserto
- Vagueavam na solidão do deserto, / sem achar o caminho para uma cidade habitada;
- sofrendo fome e sede, / suas forças iam-se acabando.
- Na sua aflição, clamaram ao Senhor / e Ele os livrou de suas angústias.
- Conduziu-os pelo caminho reto, / para chegarem a um lugar habitado.
- Que agradeçam ao Senhor por sua bondade / e por suas maravilhas em favor dos humanos.
- Pois saciou quem tinha sede, / e cumulou de bens os que tinham fome.
O primeiro quadro, como os seguintes, não tem indicações concretas de quem, quando, onde. É, portanto, a situação genérica daqueles que, no deserto, por esse ou aquele motivo, se extraviam. E, extraviando-se, sofrem fome e sede, e a angústia de terem perdido a direção até um “lugar habitado”, para onde o Senhor afinal os conduz. Belo e pungente símbolo da condição humana.
Na escuridão do cárcere
- Jaziam nas trevas e na sombra da morte, / prisioneiros de sofrimentos e de grilhões,
- por se terem revoltado contra os oráculos de Deus / e desprezado o desígnio do Altíssimo.
- Ele humilhou o coração deles pelo sofrimento; / ficaram abatidos e ninguém os socorria.
- Na sua aflição, clamaram ao Senhor, / e Ele os livrou de suas angústias.
- Tirou-os das trevas e da sombra da morte / e quebrou os seus grilhões.
- Que agradeçam ao Senhor por sua bondade / e por suas maravilhas em favor dos humanos.
- Pois quebrou as portas de bronze / e despedaçou as trancas de ferro.
O segundo quadro aborda a experiência do cárcere, vivida por Israel no período de opressão no Egito e, mais recentemente, no exílio em Babilônia. O v. 11 enuncia a causa desse aprisionamento: a “revolta contra os oráculos de Deus”, proclamados pelos profetas, e o “desprezo dos desígnios do Altíssimo”. Prisão, portanto, merecida e humilhante. Mas é da humilhação que sobe o clamor e, em resposta, a ação libertadora de Deus. Esta ação libertadora é também a missão do Servo, segundo Is 42,7: “Para que tires da prisão os cativos e, da masmorra, os que habitam nas trevas”.
A propósito, comenta Orígenes: “O Senhor, como luz, tira-nos das trevas; como vida, tira-nos da morte; como poder, rompe nossas cadeias”.
Enfermos e moribundos
- Enfraquecidos por causa de suas faltas,/ por suas culpas foram atingidos.
- Rejeitavam qualquer comida / e chegaram às portas da morte.
- Na sua aflição clamaram ao Senhor / e Ele os livrou de suas angústias.
- Enviou sua Palavra para curá-los / e preservá-los de descer ao túmulo
- Que agradeçam ao Senhor por sua bondade / e por suas maravilhas em favor dos humanos.
- Ofereçam sacrifícios de louvor / e anunciem com júbilo suas obras.
O terceiro quadro aborda a situação dos enfermos. Começa descrevendo a enfermidade como consequência do pecado.Vindo a cura através da Palavra “enviada pelo” Senhor, são convidados a agradecer, inclusive oferecendo sacrifícios e relatando a graça obtida. Algo semelhante encontramos nos salmos 32 e 38. Notar o grau da enfermidade, que chega a levar à inanição.
Nos perigos do mar
- Desceram ao mar em seus navios, / para negociar na imensidão das águas.
- Estes viram as obras do Senhor / e suas maravilhas no oceano.
- Com sua Palavra mandou soprar / um vento de tempestade que levantou as ondas.
- Subiam até os céus, afundavam nos abismos, / suas almas titubeavam na desgraça.
- Giravam, vacilando como bêbados, / e toda a sua perícia não valia nada.
- Na sua aflição, clamaram ao Senhor / e Ele os livrou de suas angústias.
- Mudou a tempestade em brisa suave / e as ondas do mar silenciaram.
- Alegraram-se com a bonança / e Ele os conduziu ao porto desejado.
- Que agradeçam ao Senhor por sua bondade / e por suas maravilhas em favor dos humanos.
- Que o exaltem na assembleia do povo / e o louvem no conselho dos anciãos.
Quarto quadro: os navegantes em alto mar. Embora os israelitas não fossem um povo marinheiro, como os fenícios, devem ter tido, porém, alguma experiência nesse campo. Em todo caso, o autor, como poeta, sabe descrever as sensações e impressões de uma tempestade marinha. Deus, que controla os ventos (Sl 104,4), despacha com uma ordem a borrasca que encrespa as ondas. Recorde-se o episódio da tempestade acalmada, nos evangelhos (Mc 4,35-41, e também Mateus e Lucas). A ação de graças (v. 32) amplia-se em ato litúrgico, comunitário, na presença das autoridades, sendo citado expressamente o “conselho dos anciãos”.
O poder transformador de Deus
- Ele muda os rios em deserto / e as fontes de água em terra seca;
- a terra fértil em brejo salobre / por causa da maldade dos seus habitantes.
- Muda o deserto em lago, / a terra seca em fontes de água.
- Encaminha para lá os famintos / que fundam uma cidade para aí morarem.
- Semeiam campos e plantam vinhas / e recolhem com abundância os seus frutos.
- Abençoa-os e se multiplicam, / não deixa diminuir o seu rebanho.
- Mas depois são reduzidos a poucos e humilhados / sob o peso da desgraça
e do sofrimento.
- Lança o desprezo sobre os príncipes / e os faz errar no deserto sem direção.
- Retira o pobre da miséria / e torna numerosas como rebanhos suas famílias.
No quinto “quadro”, o protagonismo é de Deus, e do seu poder transformador. Ele é capaz de “mudar os rios em deserto”, como se exprime também Isaías, no início do seu cap. 35: “Alegrem-se o deserto e a terra seca, rejubile-se a estepe e floresça”… Essa alternância, porém, não é aleatória: se Ele exalta os pobres, também humilha os nobres, como o proclamou Ana no seu cântico (1Sm 1,1-10) e como cantará Maria no seu Magníficat (Lc 1,47-55).
Observar e compreender
- Os justos vêm e se alegram / mas toda injustiça deve fechar a boca.
- Quem é sábio observe isto / e compreenda o amor do Senhor.
Concluindo, o salmista resume suas reflexões constatando que “os justos se alegram” com a ação de Deus, enquanto os injustos não a entendem, ou não a querem entender, e calam a boca. E nos convida a sermos “sábios”: não só observando, mas discernindo, em todas as circunstâncias, “o amor do Senhor”, que é “para sempre”.
Para refletir:
1) Qual a palavra, ou verbo, que define Deus neste salmo?
2) Que dizem os dois refrões que aparecem quatro vezes no salmo?
3) Como se manifesta o protagonismo de Deus na história?
4) Qual é a atitude do “sábio” diante dos acontecimentos?
5) Qual a atualidade deste salmo em nosso momento histórico?