Salmo 106 (105): Uma história de pecado
Como o salmo 105, também este é um salmo “histórico”. Só que são diferentes as perspectivas. Os dois salmos são como o verso e o reverso de uma medalha: benefícios de Deus, celebrados no “salmo do puro louvor” (Sl 105), e ingratidões do povo, confessadas nesta “história de pecado” (Sl 106). Como “confissão de pecados”, seu conteúdo é semelhante ao de outros textos pós-exílicos, p. ex., o cap. 9 de Neemias e o cap. 9 de Daniel. A comunidade dos exilados, ou já repatriados, dirige-se a Deus através de um seu representante, que reconhece a relação de aliança bilateral: Deus é fiel, cumprindo suas promessas, perdoando sempre; o povo, porém, é merecidamente castigado, por ter sido infiel.
Notar, nesta ampla confissão, a consciência da solidariedade no pecado. Solidariedade do povo com os chefes, e solidariedade através do tempo com os antepassados. Solidariedade também nossa, de nós, cristãos, com o povo da antiga aliança. Não nos distanciamos deles, os “pecadores”, como se nós fôssemos os “justos”.
Pelo contrário, também nós temos de confessar os nossos pecados históricos e comunitários, para que essa consciência nos ajude a não repeti-los.
A estrutura do salmo é clara: após a introdução (vv. 1-5), segue a confissão de sete (!) pecados históricos, desde a saída do Egito até a entrada na Terra (vv. 6-33), os pecados na própria Terra prometida (vv.34-42), o Exílio (vv.43-46), e a súplica final (v.47-48).
Dai graças ao Senhor
- Aleluia! Dai graças ao Senhor, / porque Ele é bom, porque eterno é seu amor!
- Quem pode narrar os prodígios do Senhor / e proclamar todo o seu louvor?
- Felizes os que observam o direito, / e praticam a justiça em todo o tempo.
- Lembra-te de mim, Senhor, por amor do teu povo, / visita-me com teu auxílio salvador;
- para que eu partilhe a felicidade dos teus eleitos, / alegre-me com a alegria do teu povo / e me glorie com a tua herança.
É um pouco estranho que essa “história de pecado” comece de maneira tão positiva, com este convite a “dar graças”. Ao convite segue a bem-aventurança dos que observam “o direito e a justiça” e, logo, o pedido do salmista a poder alegrar-se, quanto antes, com a alegria do seu povo… Logo a seguir, porém, sem mais preâmbulos, começa a confissão.
Nós pecamos… desde o Êxodo!
- Nós pecamos, como nossos pais; / cometemos delitos, fizemos o mal.
- Nossos pais, no Egito, não compreenderam teus milagres; / não se lembraram de tuas numerosas misericórdias, / revoltaram-se contra o Altíssimo junto ao mar Vermelho.
- Mas Ele os salvou por causa do seu nome, / para mostrar o seu poder.
- Ameaçou o mar Vermelho e ele secou / guiou-os pelo abismo como por terra firme.
- Salvou-os da mão de quem os odiava, / livrou-os da mão do inimigo.
- As águas cobriram seus adversários; / não sobrou nenhum deles.
- Então creram nas suas palavras / e cantaram o seu louvor.
O primeiro pecado foi a falta de confiança, de fé, mesmo enquanto já estava acontecendo a libertação. Apesar de tudo, o Senhor realizou o seu projeto, e eles puderam “cantar o seu louvor” (cf Ex 15: cântico de Moisés).
Tentaram a Deus
- Mas depressa esqueceram suas obras, / não esperaram que Ele executasse seu plano.
- Cederam à cobiça no deserto, / tentaram a Deus na solidão.
- Concedeu-lhes o que pediam, / satisfez até a náusea a sua gula.
Mal entrados no deserto, reclamam do alimento “sutil demais” do maná. Sua cobiça – é o segundo pecado – quer mais. E Deus os pune com a abundância de carne (das codornizes) até a náusea (cf Nm 11,31-34).
O fim dos revoltosos
- Depois, no acampamento, invejaram Moisés / e Aarão, o santo do Senhor.
- A terra se abriu e engoliu Datã, / e recobriu os sequazes de Abiram;
- o fogo ardeu contra esse bando, / a chama consumiu os culpados.
Em três versículos o salmista resume a revolta de Datã e Abiram, movidos pela inveja – é o terceiro pecado – contra Moisés (cf Nm 16,20-35).
O bezerro de ouro
- Fizeram um bezerro em Horeb / e adoraram o metal fundido;
- trocaram a sua Glória / pela figura de um boi, comedor de capim.
- Esqueceram a Deus, que os tinha libertado, / que tinha feito portentos no Egito,
- maravilhas no país de Cam, prodígios tremendos no mar Vermelho.
- Então pensou em exterminá-los, / se não fosse Moisés, seu eleito, / que se plantou na brecha diante dele / para desviar sua ira do propósito de destruí-los.
Quarto pecado é o da idolatria, concretizada na adoração do “bezerro de ouro”, segundo a longa narrativa do cap. 32 do livro do Êxodo. O que salvou o povo, nessa emergência, foi a decidida intervenção de Moisés, interpondo-se na “brecha” por onde passaria a ira divina.
A grande recusa
- Desprezaram uma terra deliciosa, / não acreditando na sua palavra;
- murmuraram nas suas tendas, / não obedeceram à voz do Senhor.
- Então ergueu a mão para jurar / que os faria cair no deserto,
- que dispersaria seus descendentes entre as nações / e os espalharia por outras terras.
Ofensa tantas vezes imperdoável é a recusa de um dom: foi o quinto pecado. Agora, às portas da Terra prometida, inventam pretextos para nela não entrarem. Por castigo, aquela geração pereceu no deserto, e gerações futuras foram deportadas da Terra que aqueles recusaram.
A prostituição em Baal Fegor
- Eles aderiram ao Baal de Fegor / e comeram carnes sacrificadas a deuses sem vida.
- Eles o provocaram com seus crimes, / e uma praga caiu sobre eles.
- Mas surgiu Fineias e interveio como juiz, / fazendo cessar a praga;
- isto lhe foi imputado como justiça, / de geração em geração, para sempre.
Sexto pecado: a adesão ao culto e às práticas dos moabitas implicou na infidelidade ao Senhor, infidelidade equivalente à prostituição, por isso mesmo imperdoável. O gesto violento de Finéias foi considerado obra de justiça, fazendo “cessar a praga” (cf Nm 25).
O pecado de Moisés
- Eles o irritaram junto às águas de Meriba, / e Moisés sofreu por causa deles;
- pois afligiram seu espírito, / e ele disse palavras mal pensadas.
Foi o pecado específico do próprio Moisés, impacientado pela impaciência do povo. Essa impaciência lhe custará o impedimento de entrar na Terra prometida (cf Nm 20,2-13).
A terra santa, profanada
- Não exterminaram os povos, / como o Senhor lhes tinha mandado.
- Misturaram-se às nações / e aprenderam a agir do modo delas.
- Serviram a seus ídolos, / que se tornaram um laço para eles.
- Aos demônios sacrificaram / seus filhos e suas filhas.
- Derramaram sangue inocente/ o sangue de seus filhos e filhas, / que eles sacrificaram aos ídolos de Canaã. / E a terra foi profanada com o sangue.
- Eles se contaminaram por seus atos / e se prostituíram por seus erros.
- Então a ira do Senhor se inflamou contra seu povo / e abominou a sua herança.
- Entregou-os às mãos das nações / e seus adversários os dominaram.
- Seus inimigos os oprimiram, / e eles tiveram de curvar-se ao seu domínio.
- Muitas vezes Ele os libertou, / mas eles se obstinavam na sua rebeldia / e foram humilhados por causa das suas iniquidades.
Entrando na Terra, não eliminam (!) seus habitantes, mas a eles se unem e imitam suas práticas abomináveis. Mais que “um” pecado dominante, é todo um processo de infidelidades, entremeadas de livramentos (cf livro dos Juízes), afinal culminando no Exílio, “às mãos das nações”.
Ainda, a misericórdia
- Contudo, Ele viu a sua desgraça, / e ouviu as suas súplicas.
- Lembrou-se da sua aliança, / teve piedade deles na sua grande bondade,
- e fê-los encontrar misericórdia / junto a todos os que os mantinham cativos.
Como no Egito (cf Ex 3,7), também agora, no Exílio, Deus “vê e ouve” os gritos dos cativos, “lembra-se da sua Aliança”, tem misericórdia, alivia seus sofrimentos.
Salva-nos, reúne-nos, e te louvaremos!
- Salva-nos, Senhor, nosso Deus, / reúne-nos do meio das nações, / e nós daremos graças ao teu santo nome / e nos gloriaremos com o teu louvor!
- Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, / desde sempre e para sempre! / E todo o povo diga: Amém!
O salmista retorna da terceira pessoa, “eles”, para a primeira, como no v. 4. Só que, agora, é a primeira pessoa plural: “nós”, ele próprio incluindo-se no pedido, na esperança, e no louvor.
Para refletir:
1) Como este salmo, 106, completa ou contrapõe-se ao salmo anterior (105)?
2) Por que será que esta “história de pecado” começa com o convite a “dar graças”?
3) O salmista confessa “sete” pecados históricos de seu povo. Quais seriam os nossos “sete” pecados: da nossa Igreja, do nosso país, da Arquidiocese, da nossa comunidade?
4) Em que sentido podemos/devemos considerar “pecadores” os que nos precederam? E nós?
5) De que modo Deus, que nos entregou seu Filho (cf Jo 3,16 e Rm 8,32), “vê e ouve” nossos clamores?