Na minha experiência de convivência e de opção pelos empobrecidos, há quarenta anos como presbítero nas periferias da Grande Florianópolis, aprendi a ser discípulo de Jesus na pessoa das mulheres, das crianças, dos jovens, dos envelhecidos, das pessoas em situação de rua, dos migrantes e dos imigrantes. Eles e elas sempre me indicaram o caminho do discipulado que me fez construir minha vida e missão, porque aprendi a tocar na sua carne sofredora, que é o grito de Jesus crucificado, como nos ensina Paulo em sua carta aos Coríntios.
Hoje , descer os crucificados da cruz de um sistema político e econômico que os torna descartáveis, os exclui e, por fim, os mata, se faz necessário olhar os empobrecidos não como problema, mas como solução. Essa é uma aprendizagem que me fortalece diariamente, no pele a pele com eles e elas, sentindo seu pulsar, seu ritmo, suas dores e suas alegrias. O grito dos crucificados é uma chave teologal para nós, como cristãos e cristãs, que nos faz construir caminhos para chegar à Trindade, como a melhor forma de ser comunidade.
Por isso, gostaria de refletir com vocês sobre o dia 14 de novembro, instituído pelo Papa Francisco como o Dia dos Pobres, com base na referência de Marcos 14,7: “Sempre tereis pobres entre vós”. Não deve ser para nós um dia folclórico ou apenas de alguns gestos, mas deve nos conectar com toda a opção da Igreja na América Latina e no Caribe, a partir do Concílio Vaticano II e das Conferências de Medellín, Puebla, Santo Domingos e Aparecida, onde perpassam o fio da opção que a Igreja fez pelos empobrecidos e pelos jovens. É um dia de celebração, mas também um dia de reflexão pelo caminho da escuta, do encontro e do discernimento para qualificar a nossa vida e propósito enquanto uma igreja em saída, missionária, profética e samaritana.
A mensagem do Papa Francisco traz o pobre na compreensão da categoria bíblica, ou seja, ele é o sacramento da salvação, conforme Mateus 25,35, 36 e 40: “‘porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim … todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.’”
Por isso, aprender a conviver com eles e elas, rompendo com a indiferença e a invisibilidade, é reconhecê-los como sujeitos dos seus processos de organização, partindo das suas histórias, pele, etnias, sexualidades e classes. É o novo jeito de construir a Igreja pobre a partir dos pobres e com os pobres. O elemento que rompe com a questão da descartabilidade é o princípio do cuidado com a vida, e, para isso, devemos trilhar os nossos pés para as galiléias de Jesus, onde vamos encontrar elas e eles nos tempos de hoje, que são as periferias geográficas e existenciais, derrubando muros e erguendo pontes.
Reconhecer o rosto do Cristo crucificado, tocando na sua carne sofredora e fazendo um percurso mistagógico, é perceber que não há diferença entre o Seu rosto, o rosto dos pobres e a Eucaristia. Nas primeiras comunidades cristãs, relatadas no livro Atos dos Apóstolos, existe uma sincronia entre a Palavra, que se encarnou, que convocava e provocava para a missão, a fração do Pão Eucarístico e o olhar para as necessidades das pessoas, onde a prática cristã se constituía no fato de que entre eles não havia necessitados, porque a partilha gestava a comunidade numa perspectiva equânime, onde a solidariedade e a subsidiariedade construíam o caminho da fraternidade. Quem olhava de fora dizia “vede como eles se amam”. Um amor de compromisso com a justiça social.
Em um país em que os pobres voltaram a comer ossos e buscar comida na lata do lixo, aonde voltamos para o mapa da fome, em decorrência do alto número de desempregados, devemos, neste dia, o Dia dos Pobres, nos perguntar se as celebrações das nossas eucaristias abrem espaço para incluí-los em nossas mesas, senão corremos o risco de praticarmos ritos vazios e sem sentido, como afirmam nossos padres da Patrística, quando falam da Eucaristia e os pobres.
Um caminho para recuperar a dimensão eclesial a caminho da sinodalidade é a missionariedade na construção das comunidades eclesiais de base, que partem da reflexão da Palavra, que podem renovar o ardor em nossas paróquias, construindo um caminho de comunidades em redes e redes de comunidades.
Neste Dia dos Pobres, aproveitamos para refletir se nossos projetos e programas partem das periferias, da vida dos empobrecidos e suas demandas ou se partem do centro, porque onde estão os nossos pés, pensa a nossa cabeça. Segundo a proposta de Jesus, quando abre a sua missão e recupera o profeta Isaías, ele escuta o grito do Espírito que lhe envia a proclamar o Ano da Graça aos pobres. E esse caminho se constitui como um fio programático de vida, morte, ressurreição e ascensão. Antes de partir para a casa do Pai, olhando para os seus, ele disse: Não fiquem por aí parados, voltem para a Galiléia e façam memória dos aprendizados que lá tiveram comigo. Voltar hoje e fazer o fio da memória dos 50 anos do Concílio Vaticano II e das Conferências Episcopais Latino-americanas e Caribenhas, nos faz resgatar a experiência do martírio, da vida e da missão do povo latino-americano e caribenho para o presente, e, assim, caminharmos juntos na busca de uma igreja sinodal, de comunhão, participação e missão.
Segundo o Papa Francisco, “é necessário que cada batizado se sinta envolvido na transformação eclesial e social que tanto necessitamos. Essa transformação exige conversão pessoal e comunitária, e nos leva-nos a olhar na mesma direção do olhar do Senhor”. Trata-se de entrar na caminhada dos empobrecidos, ser seus companheiros de viagem e comungar com os seus destinos, assim como nos diz o Papa Francisco: “Jesus não só está ao lado dos pobres, mas também partilha com eles a mesma sorte. Isto constitui também um forte ensinamento para os seus discípulos de todos os tempos. As suas palavras – “sempre tereis pobres entre vós” – pretende também indicar isso: a sua presença no meio de nós é constante, mas não deve induzir àquela habituação que se torna indiferença, mas empenhar numa partilha de vida que não prevê delegações. Os pobres não são pessoas externas à comunidade, mas irmãos e irmãs cujo sofrimento se partilha, para abrandar o seu mal e a marginalização, a fim de lhes ser devolvida a dignidade perdida e garantida a necessária inclusão social. Aliás, sabe-se que um gesto de beneficência pressupõe um benfeitor e um beneficiado, enquanto a partilha gera fraternidade. A esmola é ocasional, ao passo que a partilha é duradoura. A primeira corre o risco de gratificar quem a dá e humilhar quem a recebe, enquanto a segunda reforça a solidariedade e cria as premissas necessárias para se alcançar a justiça. Enfim os crentes, quando querem ver Jesus em pessoa e tocá-Lo com a mão, sabem onde dirigir-se: os pobres são sacramento de Cristo, representam a sua pessoa se apontam para Ele”.
Aqui, no chão latino-americano, temos muitos exemplos e testemunhos de homens e mulheres que partilharam suas vidas com os pobres, tendo-os como campo de missão e dando a vida por eles. Vale a pena recuperar seus testemunhos para impulsionar as nossas práticas cristãs nos tempos de hoje, como: Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Luciano Mendes, Margarida Alves, Herbert de Souza, Oscar Romero e Irmã Dorothy. Citei alguns, porém temos um longo caminho de santos e santas, profetas e profetizas, místicos e místicas que nos ensinaram e nos ensinam a olhar o pobre como sacramento do Cristo.
O Papa Francisco nos propõe, na sua mensagem, desencadear processos de desenvolvimento, tendo os empobrecidos como centralidade de nossas ações, “onde se valorize as capacidades de todos para que a complementaridade das competências e a diversidade das funções conduzam a um recurso comum de participação. Há muitas pobrezas dos ricos que poderiam ser curadas pela riqueza dos pobres, bastando para isso encontrarem-se e conhecerem-se. Ninguém é tão pobre que não possa dar algo de si na reciprocidade. Os pobres não podem ser aqueles que apenas recebem. Devem ser colocados em condição de poder dar, porque sabem bem como corresponder. Quantos exemplos de partilha diante dos nossos olhos! Os pobres ensinam-nos frequentemente a solidariedade e a partilha. É verdade que são pessoas a quem falta algo e por vezes até muito, senão mesmo o necessário; mas não falta tudo, porque conservam a dignidade de filhos de Deus que nada e ninguém lhes pode tirar”.
Um desafio permanente de ser igreja pobre no meio dos pobres é ilustrado pela conhecida frase de D. Hélder Câmara: “Quando dou pão aos pobre me chamam de santo, mas quando pergunto por que os pobres não tema pão me chamam de comunista.” Portanto nossa ação evangelizadora deve ser sempre libertadora, ao lado dos que sofrem, combatendo as consequências da miséria e exclusão, mas ao mesmo tempo, colaborando na construção de alternativas que combatam as causas que são estruturais e promovem a exclusão e a miséria. Nunca não esqueçamos de perguntar “por que os pobres não têm pão?”
Para finalizar, creio que a proximidade e reciprocidade com os pobres como companheiros de viagem e nossos amigos requer de nós, nesse dia, rever nossos projetos de vida através da escuta, que é o primeiro passo, mas requer também que a mente e o coração estejam abertos sem preconceitos. Somos convidados a partilhar com eles e elas a Palavra, integrando-os e caminhando conjuntamente, sem ter medo de ser uma Igreja enlameada com suas dores, sofrimentos e alegrias, bebendo no mesmo cálice e no poço, onde brota a nossa espiritualidade e mística. Só é possível caminhar juntos se nos basearmos na escuta da Palavra e na celebração da Eucaristia, onde os empobrecidos são protagonistas no desencadear de processos, de projetos e programas que abrem espaço para renovar as nossas pastorais sociais e construir políticas públicas. Minha experiência teve como ponto de partida um encontro em 1979, quando entrei no Morro do Mocotó e fui acolhido por uma mulher negra, pobre e Mãe de Santo, que me introduziu a olhar as mulheres a partir da sua pele, seu matriarcado e da sua história mística e sacra, no chão dos terreiros. Essa foi a minha grande conversão, que me guia até hoje, com meus pés sendo um serviço samaritano nas galiléias geográficas e existenciais de Jesus. O Dia dos Pobres pode ser, para nós, um convite à teimosia, à ternura e à transformação.
Por Pe. Vilson Groh