Conhecendo o livro dos Salmos – 129, 130 e 131 (“Das subidas” IV) – Por Pe. Ney Brasil

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Conhecendo o livro dos Salmos – 129, 130 e 131 (“Das subidas” IV) – Por Pe. Ney Brasil

 

Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.
Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.

SALMOS 129, 130 e 131 – “DAS SUBIDAS” (IV)

 

            Continuemos a “subida” a Jerusalém, reconfortados com outros “salmos das subidas”. Novamente, eles são breves. Depois dos nove que já meditamos, vamos debruçar-nos sobre mais três: o 129, que intitulamos “Quanto me atacaram”, salmo aparentemente individual mas que logo se alarga para a comunidade; o 130, que é também um dos chamados “salmos penitenciais”, que inicia pela indicação circunstancial “Das profundezas”; e o brevíssimo Sl 131, caracterizado pela terna imagem do bebê adormentado no colo da mãe: “Como criança”.

            À medida que vamos lendo, refletindo, meditando, orando, assumindo nós mesmos o conteúdo literário desses salmos, notamos como o Espírito Santo, que os inspirou e neles sopra, promove em nós uma enriquecedora experiência de fé. E aceitamos, gratos, a exortação de Santo Agostinho: “Se o salmo ora, orai; se geme, gemei… Tudo o que aí se escreve, é espelho que nos reflete”. Ainda o mesmo Santo Doutor, no seu “Tratado sobre os salmos”, nos ensina: “As duas coisas são verdade: que os salmos são nossa voz e não são, que são voz do Espírito e não são. São do Espírito de Deus porque, se Ele não as inspirasse, não  diríamos essas palavras; não são dele, porque não está necessitado nem sofre. Essas vozes são próprias de necessitados que sofrem, ou de agraciados que exultam. São nossas, porque expressam nossa necessidade; e não são nossas, porque é seu dom também a nossa capacidade de gemer, ou de exultar.” Façamos a experiência nos salmos que seguem.

 

 

SALMO 129 (128) – QUANTO ME ATACARAM!

            A certa distância do perigo superado, o orante olha para trás, não só ao passado próximo, mas também ao remoto, e dá graças a Deus pelas vezes que o libertou. Depois, pensa nos causadores dos seus sofrimentos e pede a Deus justiça. O salmo mescla, assim, ação de graças com súplica. Esta, na forma de imprecação, por sinal, violenta.

Notar também, como observamos acima, a forma individual da experiência coletiva.

Desde a minha juventude

  1. [Cântico das subidas] Quanto me atacaram desde a minha juventude

– assim diga Israel –

  1. quanto me atacaram desde a juventude, / mas não me derrotaram.

            É toda uma vida, toda uma história turbulenta, “desde a juventude”, como se expressa em outro contexto Jeremias, dirigindo-se a Jerusalém: “Eu me lembro bem de ti, da paixão da tua juventude, quando me seguias pelo deserto…” (Jr 2,2) Ataques constantes, mas sobrevivência: “Não me derrotaram”, literalmente, “Não puderam comigo”.

Lavraram minhas costas

  1. Lavradores lavraram minhas costas, / abrindo longos sulcos.
  2. Mas o Senhor é justo: / cortou as correias desses ímpios.

            Numa imagem forte e original, os opressores/atacantes “alongam”  cruelmente esses sulcos nas costas, na carne do povo oprimido. Não, porém, por muito tempo. Pois o Senhor, que é justo, “cortou as correias” de seus arados.

Como a erva dos telhados

  1. Voltem para trás, envergonhados, / todos os que odeiam Sião.
  2. Sejam como a erva dos telhados: / antes de arrancada, já está seca
  3. e não enche a mão de quem colhe,/ nem a braçada de quem ajunta os feixes.

            Tendo cantado vitória, o salmista passa para a imprecação. Pior que uma retirada vergonhosa, os invasores/atacantes tornem-se como a erva seca, que mal brotou à beira do telhado e para nada serve, nem para ser recolhida.

Não merecem a bênção

  1. E os que passam não podem dizer: / “A bênção do Senhor esteja sobre vós.

 / Nós vos abençoamos em nome do Senhor.”

            De certo modo amenizando a maldição, o salmista afirma que eles, por causa da sua impiedade, não são dignos da bênção, não podem ser abençoados.

 

SALMO 130 (129) – DAS PROFUNDEZAS

Belíssimo salmo, começando com a escuridão das profundezas e terminando com o acender-se da aurora. Outra dimensão marcante é a passagem da súplica individual, que se abre à participação coletiva. Como já lembramos acima, este é um dos sete salmos “penitenciais”, que são, além deste: o 6, o 12, o 38, o 51, o 102, e o 143.

Escuta a minha voz

  1. [Cântico das subidas] Das profundezas clamo a ti, Senhor:
  2. Meu Senhor, escuta a minha voz! / Teus ouvidos estejam bem atentos /

 à voz da minha súplica.

O salmista situa-se nas profundezas de um abismo sem saída: só a sua voz pode sair e elevar-se. Ele não concretiza a situação trágica em que se encontra, embora, pelo contexto a seguir, pareça tratar-se de um profundo arrependimento por alguma culpa, talvez causa de uma doença grave . Exatamente porque só a sua voz pode sair, ele insiste em que Deus o escute, preste ouvidos ao seu clamor.

Quem poderá subsistir?

  1. Se consideras as culpas, Senhor, / Senhor, quem poderá subsistir?
  2. Mas contigo está o perdão, / para que sejas reverenciado.

A resposta à pergunta é, naturalmente, negativa: dada a condição humana pecadora, ninguém pode subsistir, se Deus realmente “considerar”, levar em conta, nossas culpas. Ainda bem que sua misericórdia é maior que  nossos pecados, ou, como lembra o apóstolo João: Deus é maior que o nosso coração (1Jo 3,20). Além disso, como o perdão é dom seu,  graça divina (v.4), a nós cabe achegar-nos a ele de certo modo com temor, embora confiantes.

Como se aguarda a aurora

  1. Aguardo o Senhor, / minha alma aguarda a sua palavra.
  2. Minha alma se volta para o Senhor, / mais que as sentinelas, para a aurora.

Como em outros salmos de súplica, se o início deste salmo começa “nas profundezas”, seu desfecho sobe até a luminosidade da aurora, cuja vinda é certa, embora não se  possa  apressá-la: temos de deixar passar a noite! Por isso, como adverte o Eclesiástico (Sir 2,3), é preciso saber “sofrer as demoras de Deus”, que tem o seu ritmo, o seu tempo.

Israel espere o Senhor

6c. Mais que as sentinelas, a aurora, 7. Israel espere o Senhor,

      porque com o Senhor está a misericórdia, / e com ele é copiosa a redenção.

  1. Ele vai redimir Israel / de todas as suas culpas.

De repente,   o autor  deixa de falar de si mesmo e traz seu povo para o centro da sua oração, da sua esperança: é Israel quem deve aguardar o Senhor, “mais que as sentinelas, a aurora”. E o motivo é tríplice: “com Ele está a misericórdia, com Ele a redenção/libertação é copiosa, Ele vai redimir seu povo de todas as suas culpas. Não é possível ser mais  explícita a esperança, concluindo um salmo que começou tão “fundo” na angústia.

SALMO 131 (130) – COMO CRIANÇA

Também este brevíssimo salmo,  caracterizado pela imagem do “bebê saciado no colo da mãe”, conclui abrindo-se à comunidade, depois de começar concentrando-se na dimensão individual, íntima, do orante.  A humilde confiança é plasticamente representada com uma antítese – insistente, com três negações – e uma comparação, com a criança, explicitada duas vezes.

Meu coração não se exalta

  1. [Cântico das subidas] Senhor, meu coração não se exalta/ e meus olhos

 não se levantam com soberba;

Não ando atrás de coisas grandes, / nem de maravilhas acima de mim.

            Numa autoanálise sincera, porque feita diante de Deus, que não se deixa enganar, o salmista professa a humildade. Ele se mostra consciente de que a soberba não agrada nem a Deus nem aos humanos. Por isso, afirma que seu coração não se exalta, seus olhos não se levantam, seus pés não andam atrás de coisas que o ultrapassam. Sua atitude, portanto, é contrária àquela em que Jó incorreu: “Falei de maravilhas que me ultrapassam” (Jó 42,3). Por outro lado, a humildade não deve impedir-nos de buscar –  desde que não por soberba – o que é melhor, maior, até “perfeito”, segundo a palavra do Senhor Jesus: Sede perfeitos como vosso Pai do céu é perfeito” (Mt 5,48) .

Como bebê no colo da mãe

  1. Antes, me acalmo e aquieto minha alma, / como bebê saciado no colo da mãe,

 / como bebê saciado, dentro em mim, minha alma.

Esta imagem protetora da mãe, e/ou do pai, como imagem da ternura divina,  encontramo-la em Oseias: “Eu ensinei Efraim a andar, e o carreguei nos braços” (Os 11,3), ou no III Isaías: “Como um menino que a mãe consola, assim vos consolarei” (Is 66,13), ou no Sl 71,6: “Desde o colo de minha mãe és minha proteção”. São imagens de ternura que devem levar-nos àquela conversão de que fala Jesus: “Se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, não entrareis no Reino dos céus…” (Mt 18,3). Fazem-nos lembrar também Santo Agostinho: “Inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em ti, Senhor!”

Israel espere no Senhor

  1. Israel espere no Senhor / desde agora e para sempre.

Por fim, aplicando o ensinamento a Israel, o povo, a experiência individual faz-se comunitária. Suscita, então, questões graves, aliás já levantadas quanto ao indivíduo. Como conciliar esta humilde confiança,  com a aspiração ao crescimento nacional? Em que sentido Israel pode aspirar a ser “grande”? De que maneira ele será uma “bênção” entre os povos (cf Gn 12,2 e Is 19,24-25)?

Pe. Ney Brasil Pereira

Professor emérito de Exegese Bíblica no ITESC – email: [email protected]

 

Para refletir: 1) Quem seriam os “lavradores” que “lavram” as costas do salmista, no Sl 129?  2) Que significam as “profundezas” do início do Sl 130?

3) Ainda segundo o Sl 130, podemos marcar prazo para a intervenção de Deus?

4) No Sl 131, como conciliar a humildade, com a busca da perfeição?

5) Que nos diz, segundo o salmista, a cena do bebê saciado no colo da mãe?

Artigo publicado na edição de novembro/2016, nº 229, do Jornal da Arquidiocese

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