Ainda estamos “subindo a Jerusalém”, animados pelos “salmos das subidas”. Do total dos quinze salmos que constituem esse conjunto, já estudamos seis deles. Vamos agora estudar mais três, a saber: o 126, intitulado “Parecíamos sonhar!”; o 127, que resumimos na fórmula “Sem Deus e com Ele”; e o 128, que intitulamos “Bem-aventurança”. Novamente, são salmos breves, que não deixam de impressionar pela força das imagens que os inspiram.
A propósito, vejamos o que, segundo Santo Ambrósio, caracteriza os salmos, em comparação com outras passagens da Sagrada Escritura: “A história instrui, diz o santo Doutor, a lei ensina, a profecia anuncia, a correção castiga, a moral persuade. Ora, no livro dos Salmos, há proveito para todos e auxílio para a salvação de cada um. Quem os lê, tem remédio especial para as chagas das paixões. Quem quiser lutar como em ginásio de almas e estádio de virtudes, onde estão preparados diversos gêneros de luta, escolha para si aquele que julgar mais adequado para mais facilmente alcançar a coroa. Se alguém quiser recordar e imitar os feitos gloriosos dos antepassados, encontrará compendiada num salmo toda a história dos nossos pais, podendo assim enriquecer o tesouro da memória numa breve leitura”. Aproveitemos, pois, a riqueza dos salmos, aqui, os “salmos das subidas”, para nossa instrução e salvação.
SALMO 126 (125) – PARECÍAMOS SONHAR!
Este salmo tem duas partes muito claras: a primeira, é ação de graças pela “mudança de sorte”, e a segunda é um pedido para que essa mudança se complete, ou se repita. O salmo diz que foi uma mudança “incrível”, um “sonho”, e parece referir-se à volta da Babilônia, supondo a situação do desterro e a repatriação. Depois, o salmo fica disponível para outras situações de retorno e outras mudanças transcendentais.
Parecia um sonho
- [Cântico das subidas] Quando o Senhor mudou a sorte de Sião,
Parecíamos sonhar.
Tão grande é o gozo, que aos orantes parece sonho. Por que há de ser assim? Não será visão pessimista da vida pensar que as desgraças são normais e as venturas são sonho? Talvez seja cautela: dá-nos medo entregar-nos ao gozo, talvez não seja certo, talvez não seja duradouro… Mas o “sonho” é realidade, e seu autor é o Senhor: foi Ele quem mudou a sorte de Sião!
O transbordamento
- Nossa boca transbordava de sorrisos
E nossa língua, de alegria.
Então se comentava entre os gentios:
“O Senhor fez com eles maravilhas”.
- Maravilhas fez conosco o Senhor,
Encheu-nos de alegria.
A realidade da obra do Senhor desperta, nos judeus agraciados, o transbordamento da alegria. E, nos gentios expectadores, o reconhecimento das maravilhas em favor desse povo abençoado que pode repetir, como num eco: “Sim, maravilhas fez conosco o Senhor, encheu-nos de alegria!”.
Como as torrentes no Neguev
- Muda, Senhor, a nossa sorte,
Como as torrentes no Neguev.
Num território inóspito como o Neguev, ao sul do mar Morto, uma chuva breve mas intensa pode encher de torrentes providenciais os leitos secos, que de repente se tornam férteis e reverdecem, numa mudança maravilhosa.
Quem semeia, colhe
- Quem semeia entre lágrimas
Possa colher com alegria.
Não há outra maneira de colher, senão semeando. Só se desfruta com gozo o que se realiza com fadiga. Entretanto, há sempre o risco de a colheita ser magra: por isso, o anseio de que se possa colher com alegria!
Semear custoso, colheita feliz
- Quando se vai, vai-se chorando,
Levando a bolsa de sementes;
Quando se volta, volta-se alegre,
carregando os feixes.
A imagem é expressiva numa cultura agrária elementar, que tem consciência dos dois momentos necessários da vida: a semeadura, entre lágrimas, fadigosa, e a colheita, ditosa, feliz.
SALMO 127(126) – SEM DEUS, E COM ELE
Este salmo expressa a confiança em Deus, em termos negativos e positivos: “Sem Deus, é inútil… com Deus, tudo é possível”. O tema é central no Antigo e no Novo Testamento, porque a confiança em Deus é outra versão da fé e é irmã da esperança.
O Senhor constrói, o Senhor guarda
- [Cântico das subidas. De Salomão]
Se o Senhor não construir a casa,
É inútil o cansaço dos pedreiros.
Se não é o Senhor que guarda a cidade,
Em vão vigia a sentinela.
O salmista sabe, por experiência, que a nós compete construir, a nós compete vigiar. Mas sabe também que o esforço humano, sem a ajuda divina, parece muitas vezes infrutífero. Por isso mesmo ele sabe que é preciso ajudar-se, empenhar-se, para que Deus nos ajude.
O pão com suor, ou ganho à noite?
- É inútil madrugar, deitar tarde,
Comendo um pão ganho com suor;
A quem o ama, Ele o concede enquanto dorme.
Novamente, se é preciso madrugar, comer o pão do suor, por outro lado, “o Pai sabe que temos necessidade do alimento e da veste” (cf Mt 6,32), e a seus amados Ele não os nega.
Os filhos, herança do Senhor
- Os filhos são a herança do Senhor,
é sua graça o fruto do ventre.
- Como flechas na mão do guerreiro,
São os filhos gerados na juventude.
- Feliz o homem que tem a aljava cheia deles:
Não ficará humilhado quando vier à porta
Para tratar com seus inimigos.
Depois de ter exaltado a construção material da casa e sua defesa pelo Senhor, o salmista debruça-se sobre o que constitui a riqueza viva do lar, os filhos, chamando-os de “graça” e “herança” do Senhor, e recorrendo a uma metáfora belicosa: eles são como “flechas” na mão do guerreiro, garantindo-lhe a segurança nos conflitos. É belo, neste final do salmo, este clímax representado pelos filhos.
SALMO 128 (127) – BEM-AVENTURANÇA
Este salmo é uma bem-aventurança, que canta a felicidade da vida familiar no contexto de Jerusalém e Israel. Vindo depois do salmo anterior, ele o completa e corrige. Completa, porque menciona a esposa na intimidade do lar. Corrige-o, porque exalta o valor do trabalho humano.
A bem-aventurança do temor
- [Cântico das subidas] Feliz quem teme o Senhor
E segue seus caminhos.
Evidentemente não é o “medo” de Deus que traz felicidade, mas seu temor reverencial, que é o “princípio da sabedoria” e que leva o fiel a “seguir seus caminhos”, cumprindo seus mandamentos. É a ética como consequência da religião.
O trabalho, a esposa, os filhos
- Viverás do trabalho de tuas mãos,
Feliz e satisfeito.
- Tua esposa será como uma videira fecunda
No interior de tua casa;
Teus filhos, como rebentos de oliveira
Ao redor de tua mesa.
A vida familiar está reduzida ao essencial. O pai trabalha, desfrutando do esforço de suas mãos. A mãe é comparada a uma videira fecunda, na intimidade da casa: da intimidade brota a fecundidade. Também os filhos, em nova imagem vegetal, “pululam”, viçosos, ao redor da mesa farta.
Assim será a bênção
- Assim será abençoado
O homem que teme o Senhor.
A “bênção”, aqui, vinda de Deus, é consequência do temor reverencial que une a Ele e traz a felicidade, antes expressa nos bens essenciais da família, a começar do desfrute do próprio trabalho.
Paz sobre Israel!
- De Sião o Senhor te abençoe!
Possas ver Jerusalém feliz
Todos os dias de tua vida.
- E vejas os filhos de teus filhos,
Paz sobre Israel!
No final do salmo, a bênção se alarga: do indivíduo se estende para a cidade de Jerusalém e, da cidade, se alarga ainda para todo o povo, todo Israel, almejando-lhe a paz, o shalôm, novo nome da “bênção”. Uma leitura eclesiológica e cristológica do salmo vê em Israel a Igreja e, no Esposo, o próprio Cristo.
Pe. Ney Brasil Pereira
Professor emérito de Exegese Bíblica do ITESC – email: [email protected].
Para refletir: 1) Quais são as duas partes do Sl 126?
2) Como o Sl 127 expressa a confiança em Deus?
3) O que constitui a riqueza viva do lar, segundo o Sl 127?
4) Como o Sl 128 completa e, de certo modo, corrige o Sl 127?
5) Como se alarga a bênção do Sl 128? Qual a sua leitura eclesiológica e cristológica?
Artigo publicado na edição de outubro/2016, nº 228, do Jornal da Arquidiocese