Conhecendo o livro dos Salmos – 119 (118) I – Por Pe. Ney Brasil

>
>
Conhecendo o livro dos Salmos – 119 (118) I – Por Pe. Ney Brasil

SALMO 119(118) – O SALMO DA LEI (III)

 

           

Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.
Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.

Creio que vale a pena, antes de comentarmos mais algumas estrofes deste grande “Salmo da Lei”, reproduzir aqui a síntese que dele encontramos na segunda parte do Salmo 19(18), o salmo que começa exaltando a glória do Deus criador e, nos versículos 8 a 11, canta os louvores da Lei. Vejamos, então, esses quatro versículos: (v.8) A lei do Senhor é perfeita, conforto para a alma; / o testemunho do Senhor é verdadeiro, sabedoria dos humildes. (v.9) As ordens do Senhor são justas, alegram o coração; / os mandamentos do Senhor são retos, iluminam os olhos. (v.10) O temor do Senhor é puro, dura para sempre; / os julgamentos do Senhor são fieis e justos, (v.11) mais preciosos  que o ouro, que muito ouro refinado; / mais doces que o mel, e que o licor de um favo.

            No Sl 119, porém, não temos a síntese, mas o desdobramento desses louvores da Lei em nada menos que cento e setenta e seis versículos, num total de vinte e duas estrofes. Alguém comparou cada uma das vinte e duas estrofes a um “carrilhão de oito sinos”, bimbalhando em louvor da Lei, cada sino representando um dos oito sinônimos

que o salmista comenta incansavelmente em cada estrofe, fazendo ressoar, em cada uma delas, sempre novas variações. Já estudamos oito estrofes. Vejamos, agora, mais quatro.

                        9ª estrofe (119,65-72): Letra TET – A BONDADE

 

Fizeste o bem

  1. Fizeste o bem a teu servo, Senhor, / segundo a tua palavra.
  2. Ensina-me a discernir e entender, / pois confio nos teus mandamentos.
  3. Antes de ser humilhado, desviei-me do caminho. / Agora, porém, guardo

 a tua instrução.

            Esta estrofe começa com o reconhecimento de que Deus, que é bom, “fez o bem” ao seu servo. De que maneira? Ensinando-o a “discernir” e “entender”. Discernir, por exemplo entre  o que posso mudar, e o que, não podendo mudar, devo aceitar, segundo reza a “oração da serenidade”. Mesmo assim, o salmista reconhece ter-se, às vezes,  “desviado do caminho”, num momento de presunção.

Tu és bom

  1. Tu és bom e fazes o bem: / ensina-me teus decretos.
  2. Caluniaram-me os insolentes. / Mas eu, de todo o coração, guardo teus preceitos.
  3. Seu coração é espesso como a gordura: / eu, na tua lei encontro minhas delícias.

            Nova afirmação da bondade divina, que nos faz lembrar a palavra de Jesus: “ Deus é bom” (Mc 10,18). Em contraste, os “insolentes” são maus, caluniadores, de coração “espesso como a gordura”.

Foi bom para mim

  1. Foi bom para mim ser humilhado, / para eu apreender teus estatutos.
  2. Para mim vale mais a lei da tua boca, / do que milhões em ouro e prata.

            O salmista reconhece aqui o valor positivo, a “bondade”, da humilhação que faz ver como é enganosa a presunção, o orgulho. Muitas vezes, é só a humilhação que nos conduz à verdadeira humildade, e só esta nos faz “apreender” a sabedoria.

 

10ª estrofe (119,73-80): Letra YOD – TUAS MÃOS

 

Tu me plasmaste

  1. Tuas mãos me fizeram e plasmaram: / faze-me entender,

 e aprenderei teus mandamentos.

  1. Teus fieis, ao ver-me, terão alegria / porque esperei na tua palavra.

            A estrofe começa com a lembrança do ato criador personalizado em relação ao ser humano (Gn 2,7), como recorda também o autor do livro de Jó: “Tuas mãos me plasmaram” (Jó 10,8). Exatamente porque “plasmou” o ser humano, Deus comprometeu-se com ele: quis ensiná-lo, como um pai corrige seu filho (cf Dt 8,5) a fim de que este, aprendendo os mandamentos, tenha garantida a vida.

Tua misericórdia

  1. Senhor, reconheço que são justas as tuas normas / e com razão me humilhaste.
  2. Tua misericórdia seja meu consolo, / segundo tua promessa a teu servo.
  3. Venha a mim tua misericórdia para eu reviver, / e minhas delícias serão tua lei.

            Novamente reconhecendo que a humilhação, mesmo quando punitiva, é útil, o salmista manifesta a sua confiança na misericórdia de Deus: é a misericórdia que consola e que faz reviver, e que faz saborear “as delícias da Lei”.

Os soberbos

  1. Envergonhem-se os soberbos, que me oprimem com mentiras; / quanto a mim,

 meditarei nos teus preceitos.

  1. Voltem a mim os que te temem, / os que conhecem teus testemunhos.
  2. Que meu coração seja íntegro nos teus estatutos, / para eu não me envergonhar.

            Os “soberbos”, antes mencionados como “insolentes” (v. 69), passarão vergonha, pelo fracasso de suas mentiras, enquanto o salmista, guardando integralmente os “estatutos” divinos, não há de se envergonhar. Em contraste, virão de novo a ele os que “temem” o Senhor,  os que conhecem e praticam sua Lei.

 

11ª estrofe (119,81-88): Letra KAF – COMO UM ODRE

 

                        Eu anseio

  1. Eu anseio pela tua salvação, / espero na tua palavra.
  2. Meus olhos anseiam pela tua promessa,/ enquanto digo:

“Quando me darás conforto?”

Num momento de ansiedade, o salmista exprime o seu desejo de que não tarde a salvação que ele espera, não tarde o conforto divino, do qual sente necessidade.

Como um odre

  1. Sou como um odre exposto à fumaça, / mas não esqueço teus estatutos.
  2. Quantos serão os dias do teu servo? / Quando julgarás os meus perseguidores?

            Conhecemos o “odre” de vinho, da parábola evangélica do “vinho novo” em “odres novos”. É um recipiente de couro, para guardar líquidos. Aqui, o próprio salmista se compara a um “odre esfumaçado”, denegrido, quase consumido pelo tempo, mas fiel na guarda dos “estatutos” divinos, e esperançoso no julgamento de seus perseguidores.

Por pouco

  1. Cavaram-me um fosso os insolentes / que não seguem tua lei.
  2. Todos os teus mandamentos são verdade; / sem razão me perseguem, socorre-me!
  3. Por pouco não me expulsam deste mundo, / mas não abandonei os teus preceitos.
  4. Segundo teu amor faz-me viver / e observarei os testemunhos de tua boca.

            Continuando a descrição da sua situação crítica, o salmista denuncia o “fosso” que seus adversários lhe cavaram, com a intenção de “expulsá-lo do mundo”. Por isso,  multiplica os pedidos de socorro e as promessas de fidelidade.

12ª estrofe (119,89-96): Letra LÁMED – ESTABILIDADE

                     Tua palavra

  1. A tua palavra, Senhor, é eterna, / estável como o céu.
  2. Tua fidelidade dura por todas as gerações; / fundaste a terra, e ela está firme.

            De maneira insuperável, o profeta Isaías proclamou a perenidade da palavra do Senhor: “A erva seca, murcha a flor, mas a palavra do nosso Deus permanece eternamente” (Is 40,8). Aqui, o salmista compara a eternidade da Palavra à estabilidade do céu. E, por associação de ideias, proclama a fidelidade do Senhor, que permanece ao longo das gerações.

                                            A teu serviço                            

  1. Tudo subsiste até hoje conforme tuas normas, / pois tudo está a teu serviço.
  2. Se tua lei não fosse meu prazer, / eu já há muito teria perecido na miséria.
  3. Jamais esquecerei teus preceitos: / pois por eles me deste a vida.

            Qual o objetivo da criação, das criaturas? O salmista responde: “tudo” está ao serviço de Deus, não só os ventos, como proclama o Sl 104,4. Quanto a ele, o seu “serviço” é expresso pelo cumprimento dos divinos preceitos, que lhe garantem a vida, e vida plena.

                                                Sou teu!

  1. Eu te pertenço: salva-me, / porque procuro teus preceitos.
  2. Os ímpios me esperam para arruinar-me: / eu compreendo teus testemunhos.
  3. Vi limites em tudo o que se realiza, / mas o teu mandamento não tem limites.

            Expressando a sua total consagração a Deus, o salmista proclama pertencer a Ele, esperando com isso que o Senhor o salve, o defenda como propriedade sua, contra o assalto dos ímpios. Raramente, na Bíblia, encontramos expressão tão sintética da união entre criatura e Criador: “Sou teu”… Por isso, “ama-me, salva-me!” Quanto ao versículo final, é novamente a pequenez humana, nossas limitações, contrastando com a amplidão, a infinitude, do projeto divino.

Pe. Ney Brasil Pereira

Professor emérito de Exegese Bíblica da FACASC

Email: [email protected]

Para refletir: 1) Por que é importante o dom do discernimento?

            2) Em que sentido a humilhação é útil e, muitas vezes, necessária?

            3) Qual a consequência de Deus nos ter “plasmado” com suas mãos?

            4) Em que sentido o salmista se compara a um odre esfumaçado?

            5) Qual o sentido profundo da curta expressão “sou teu”, dirigida a Deus?

Por: Pe. Ney Brasil Pereira – Professor Emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

PODCAST: UM NOVO CÉU E UMA NOVA TERRA