Conhecendo o livro dos Salmos – 119 (118) I – Por Pe. Ney Brasil

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Conhecendo o livro dos Salmos – 119 (118) I – Por Pe. Ney Brasil

SALMO 119(118) – O AMOR À LEI (II)

 

           

Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.
Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.

Continuamos a estudar e meditar o salmo 119(118), com suas vinte e duas estrofes de oito versículos cada uma, todas dedicadas ao tema do “amor à Lei”. Já vimos que seu autor, engenhosamente, para indicar totalidade, propôs-se igualar o número das estrofes ao número das letras do alfabeto da sua língua, o hebraico. E, mais engenhosamente ainda, quis que essa mesma letra iniciasse cada um dos oito versículos que constituem cada uma das estrofes.

Infelizmente, na tradução, não podemos perceber essa refinação literária. Mas o que percebemos, sim, é o fervor e a piedade do salmista, falando incessantemente da Lei com todos os seus possíveis sinônimos, estrofe por estrofe. A propósito, essa devoção peculiar à Lei não poderia denotar, ou favorecer, certo legalismo? Poderia, sem dúvida, mas não necessariamente. Uma coisa é o legalismo, preocupado exclusivamente com a letra da Lei, esquecendo-se ou descuidando do seu espírito. Esse legalismo, segundo os evangelhos, caracterizava bom número de fariseus, e foi firmemente denunciado por Jesus. Por outro lado, o mesmo Senhor Jesus, segundo suas próprias palavras, não veio “abolir a Lei”, que, no seu espírito, é a expressão da vontade do Pai, mas veio “levar a Lei à perfeição”. Nesse sentido, Jesus amava a Lei

 

            5ª estrofe (119,33-40): Letra – O SEGUIMENTO

 

Seguir até o fim

  1. Indica-me, Senhor, o caminho dos teus estatutos, / e vou segui-lo até o fim.
  2. Dá-me inteligência, para que eu observe tua Lei / e a guarde de todo o coração.
  3. Dirige-me na senda dos teus mandamentos / porque neles está meu prazer.

            O chamado de Mateus resumiu-se neste único convite: Segue-me (Mt 9,9), um convite irresistível. O salmista não menciona ter ouvido convite semelhante, mas sente interiormente o chamado a seguir o caminho do Deus do seu povo, a ser dirigido na senda dos mandamentos divinos, porque neles está a sua alegria e prazer.

Não para a avareza

  1. Inclina meu coração para teus preceitos / e não para a avareza.
  2. Desvia meu olhar para eu não admirar a falsidade, / faze-me viver no teu caminho.

            Temos aqui dois pedidos com acento negativo. O salmista pede que o Senhor o desvie das más inclinações possíveis, livrando-o de “inclinar-se” para a avareza, e de “admirar” a falsidade. De que “falsidade” se trata? É tudo aquilo que se contrapõe a Deus.

Dá-me a vida

  1. Cumpre para com teu servo a promessa, / que fizeste para os que te temem.
  2. Afasta o insulto que me aflige, / pois teus julgamentos são bons.
  3. Eu desejo teus preceitos: / com a tua justiça, dá-me a vida.

            Duas vezes nesta estrofe se pede o dom da vida, promessa central na pregação do Deuteronômio. No v. 37, vincula-se a vida ao “caminho”, o caminho dos justos (cf Sl 1,6), enquanto, no v. 40, ela vincula-se à “justiça” de Deus, entendida como justiça salvadora. No v. 39, o contraponto do “insulto” a que está exposto o salmista, pela sua fidelidade à Lei.

 

            6ª estrofe (119,41-48): Letra VAU – DIANTE DOS REIS 

 

Tua misericórdia

  1. Senhor, venha a mim tua misericórdia,/ tua salvação, segundo a tua promessa.
  2. A quem me insulta poderei responder, / pois tenho confiança em tua palavra.
  3. Não me tires da boca a palavra verdadeira, / pois espero nos teus julgamentos.

            Esta estrofe assinala o protagonismo de Deus na vida do salmista, através do tríplice dom da sua misericórdia, sua salvação, sua promessa. Esta certeza lhe dá coragem para “responder” a quem o insulte. Por isso mesmo, ele pede que o Senhor não lhe tire a “palavra verdadeira”: palavra certa, na hora certa…

Vou guardar

  1. Vou guardar continuamente a tua lei, / para sempre, eternamente.
  2. Caminharei com segurança, / pois procuro observar teus preceitos.

            Tendo expresso a  sua confiança em Deus, o salmista reafirma o seu protagonismo: ele mesmo estará atento a “guardar” a Lei, e isto “para sempre”. É o que lhe dá a certeza de que caminhará “com segurança”.

Diante dos reis

  1. Diante dos reis vou falar de teus ensinamentos, / sem ficar envergonhado.
  2. Com teus mandamentos me deleitarei: / eu os amo.
  3. Erguerei as mãos a teus preceitos, que amo / e meditarei nos teus decretos.

            A antífona de entrada da Missa de uma Virgem e Mártir, no antigo missal, era tirada destes versículos, cujos verbos, na tradução latina e já na grega, estavam no passado: “Eu falava…”, referindo-se ao testemunho já dado pela Mártir, por exemplo, Catarina de Alexandria, diante de Maxêncio. Na versão atual, com os verbos no futuro, o salmista expressa a sua própria decisão de não se acovardar no testemunho da Lei, nem diante dos poderosos.

            7ª estrofe (119,49-56): Letra ZAIN – A MEMÓRIA

 

Lembra-te

  1. Lembra-te da palavra dada a teu servo: / com ela me firmaste a esperança.
  2. Isto me consola na minha miséria: / a tua promessa me faz viver.

            Recordar, lembrar-se, é muito importante na vida de fé: Deus “se lembra” de sua palavra, para cumpri-la (v.49), e o salmista, por sua vez, sente o dever de “lembrar-se”, de “não se esquecer” do Nome do Senhor e de seus benefícios (v.55). Pelo fato de não se esquecer, ele sente-se consolado mesmo na humilhação: a promessa de Deus o faz reviver.

Os soberbos

  1. Os soberbos me dirigem os piores insultos, / mas não me desvio da tua lei.
  2. Recordo tuas normas de outrora, Senhor, / e com elas me consolo.
  3. Fiquei cheio de ira contra os ímpios / que abandonam tua lei.
  4. Teus decretos são cânticos para mim / na terra em que sou migrante.

            Os “insultos dos soberbos” não conseguem fazer o salmista desviar-se da Lei: sua memória dos  antigos mandamentos o conforta. Embora os ímpios e apóstatas excitem a sua indignação profética, para ele, mesmo em terra estranha, os divinos decretos ressoam-lhe como música no coração.

Eu recordo

  1. Recordo teu nome no decorrer da noite, / Senhor, e observo a tua lei.
  2. Tudo isso me aconteceu, / porque guardei teus preceitos.

            O salmista começou a estrofe pedindo ao Senhor que “se lembrasse” da sua promessa. E a termina reafirmando que ele, por sua vez, não se esquece do “nome” de Deus nem mesmo à noite. Recorda, também, o que lhe aconteceu, interpretando tudo positivamente, pelo fato de ele ter sido fiel.

 

            8ª estrofe (119,57-64): Letra HET – A MISERICÓRDIA

 

Minha herança

  1. Eu disse: Minha parte é o Senhor. / Por isso, guardo as tuas palavras.
  2. De todo o coração aplaquei tua face: tem piedade, segundo a tua promessa.
  3. Examinei meus caminhos, / voltei meus passos para teus ensinamentos.
  4. Eu me apresso, não quero tardar / em guardar teus mandamentos.

            Meu “lote”, ou seja, minha parte da herança, é o próprio Senhor: assim diziam os levitas, que não tinham parte na repartição da Terra prometida (cf Nm 18,20). Aqui, o salmista, levita ou não, afirma que sua vida está centrada em deus. Por isso, ele confia em poder “aplacar” a face de Deus, pede piedade, compromete-se em “examinar” seus próprios caminhos e dispõe-se a “apressar-se” no cumprimento dos mandamentos.

Os laços dos ímpios

  1. Os laços dos ímpios me envolveram, / mas não esqueci tua lei.
  2. No meio da noite levanto-me para te louvar / pelos teus justos julgamentos.

            Os “ímpios”, com suas armadilhas, põem o salmista à prova, mas não conseguem fazê-lo esquecer-se da Lei. Pelo contrário, até no meio da noite ele se levanta para louvar a Deus, prática depois institucionalizada, e ainda hoje observada em certas ordens contemplativas.

A tua misericórdia

  1. Sou amigo de todos os que te temem / e observam teus preceitos.
  2. Da tua misericórdia, Senhor, está cheia a terra: / ensina-me teus decretos.

            O v. 63, proclamando a amizade do salmista com os “tementes” a Deus, contrasta com o v. 61, no qual ele denuncia as armadilhas dos “ímpios”. O versículo final, de amplidão inesperada, exalta a misericórdia divina que se estende “por toda a terra”. Dessa misericórdia são instrumentos os “decretos” divinos. É por isso que o salmista dispõe-se a aprofundá-los, deixando-se “ensinar” por Deus.

Pe. Ney Brasil Pereira

Professor emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC

Para refletir: 1) Que é o “legalismo”? Jesus demonstra-se “legalista” nos evangelhos?

            2) “Seguir a Jesus” é seguir o caminho dos mandamentos? Como?

            3) Que significa, hoje, “falar dos ensinamentos de Deus” “diante dos reis”?

            4) Qual a importância da memória na vida de fé?

            5) Em que sentido “a terra toda” está “cheia” da misericórdia do Senhor?

Por: Pe. Ney Brasil Pereira – Professor Emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC

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