SALMO 119(118) – O AMOR À LEI (II)
Continuamos a estudar e meditar o salmo 119(118), com suas vinte e duas estrofes de oito versículos cada uma, todas dedicadas ao tema do “amor à Lei”. Já vimos que seu autor, engenhosamente, para indicar totalidade, propôs-se igualar o número das estrofes ao número das letras do alfabeto da sua língua, o hebraico. E, mais engenhosamente ainda, quis que essa mesma letra iniciasse cada um dos oito versículos que constituem cada uma das estrofes.
Infelizmente, na tradução, não podemos perceber essa refinação literária. Mas o que percebemos, sim, é o fervor e a piedade do salmista, falando incessantemente da Lei com todos os seus possíveis sinônimos, estrofe por estrofe. A propósito, essa devoção peculiar à Lei não poderia denotar, ou favorecer, certo legalismo? Poderia, sem dúvida, mas não necessariamente. Uma coisa é o legalismo, preocupado exclusivamente com a letra da Lei, esquecendo-se ou descuidando do seu espírito. Esse legalismo, segundo os evangelhos, caracterizava bom número de fariseus, e foi firmemente denunciado por Jesus. Por outro lado, o mesmo Senhor Jesus, segundo suas próprias palavras, não veio “abolir a Lei”, que, no seu espírito, é a expressão da vontade do Pai, mas veio “levar a Lei à perfeição”. Nesse sentido, Jesus amava a Lei
5ª estrofe (119,33-40): Letra HÊ – O SEGUIMENTO
Seguir até o fim
- Indica-me, Senhor, o caminho dos teus estatutos, / e vou segui-lo até o fim.
- Dá-me inteligência, para que eu observe tua Lei / e a guarde de todo o coração.
- Dirige-me na senda dos teus mandamentos / porque neles está meu prazer.
O chamado de Mateus resumiu-se neste único convite: Segue-me (Mt 9,9), um convite irresistível. O salmista não menciona ter ouvido convite semelhante, mas sente interiormente o chamado a seguir o caminho do Deus do seu povo, a ser dirigido na senda dos mandamentos divinos, porque neles está a sua alegria e prazer.
Não para a avareza
- Inclina meu coração para teus preceitos / e não para a avareza.
- Desvia meu olhar para eu não admirar a falsidade, / faze-me viver no teu caminho.
Temos aqui dois pedidos com acento negativo. O salmista pede que o Senhor o desvie das más inclinações possíveis, livrando-o de “inclinar-se” para a avareza, e de “admirar” a falsidade. De que “falsidade” se trata? É tudo aquilo que se contrapõe a Deus.
Dá-me a vida
- Cumpre para com teu servo a promessa, / que fizeste para os que te temem.
- Afasta o insulto que me aflige, / pois teus julgamentos são bons.
- Eu desejo teus preceitos: / com a tua justiça, dá-me a vida.
Duas vezes nesta estrofe se pede o dom da vida, promessa central na pregação do Deuteronômio. No v. 37, vincula-se a vida ao “caminho”, o caminho dos justos (cf Sl 1,6), enquanto, no v. 40, ela vincula-se à “justiça” de Deus, entendida como justiça salvadora. No v. 39, o contraponto do “insulto” a que está exposto o salmista, pela sua fidelidade à Lei.
6ª estrofe (119,41-48): Letra VAU – DIANTE DOS REIS
Tua misericórdia
- Senhor, venha a mim tua misericórdia,/ tua salvação, segundo a tua promessa.
- A quem me insulta poderei responder, / pois tenho confiança em tua palavra.
- Não me tires da boca a palavra verdadeira, / pois espero nos teus julgamentos.
Esta estrofe assinala o protagonismo de Deus na vida do salmista, através do tríplice dom da sua misericórdia, sua salvação, sua promessa. Esta certeza lhe dá coragem para “responder” a quem o insulte. Por isso mesmo, ele pede que o Senhor não lhe tire a “palavra verdadeira”: palavra certa, na hora certa…
Vou guardar
- Vou guardar continuamente a tua lei, / para sempre, eternamente.
- Caminharei com segurança, / pois procuro observar teus preceitos.
Tendo expresso a sua confiança em Deus, o salmista reafirma o seu protagonismo: ele mesmo estará atento a “guardar” a Lei, e isto “para sempre”. É o que lhe dá a certeza de que caminhará “com segurança”.
Diante dos reis
- Diante dos reis vou falar de teus ensinamentos, / sem ficar envergonhado.
- Com teus mandamentos me deleitarei: / eu os amo.
- Erguerei as mãos a teus preceitos, que amo / e meditarei nos teus decretos.
A antífona de entrada da Missa de uma Virgem e Mártir, no antigo missal, era tirada destes versículos, cujos verbos, na tradução latina e já na grega, estavam no passado: “Eu falava…”, referindo-se ao testemunho já dado pela Mártir, por exemplo, Catarina de Alexandria, diante de Maxêncio. Na versão atual, com os verbos no futuro, o salmista expressa a sua própria decisão de não se acovardar no testemunho da Lei, nem diante dos poderosos.
7ª estrofe (119,49-56): Letra ZAIN – A MEMÓRIA
Lembra-te
- Lembra-te da palavra dada a teu servo: / com ela me firmaste a esperança.
- Isto me consola na minha miséria: / a tua promessa me faz viver.
Recordar, lembrar-se, é muito importante na vida de fé: Deus “se lembra” de sua palavra, para cumpri-la (v.49), e o salmista, por sua vez, sente o dever de “lembrar-se”, de “não se esquecer” do Nome do Senhor e de seus benefícios (v.55). Pelo fato de não se esquecer, ele sente-se consolado mesmo na humilhação: a promessa de Deus o faz reviver.
Os soberbos
- Os soberbos me dirigem os piores insultos, / mas não me desvio da tua lei.
- Recordo tuas normas de outrora, Senhor, / e com elas me consolo.
- Fiquei cheio de ira contra os ímpios / que abandonam tua lei.
- Teus decretos são cânticos para mim / na terra em que sou migrante.
Os “insultos dos soberbos” não conseguem fazer o salmista desviar-se da Lei: sua memória dos antigos mandamentos o conforta. Embora os ímpios e apóstatas excitem a sua indignação profética, para ele, mesmo em terra estranha, os divinos decretos ressoam-lhe como música no coração.
Eu recordo
- Recordo teu nome no decorrer da noite, / Senhor, e observo a tua lei.
- Tudo isso me aconteceu, / porque guardei teus preceitos.
O salmista começou a estrofe pedindo ao Senhor que “se lembrasse” da sua promessa. E a termina reafirmando que ele, por sua vez, não se esquece do “nome” de Deus nem mesmo à noite. Recorda, também, o que lhe aconteceu, interpretando tudo positivamente, pelo fato de ele ter sido fiel.
8ª estrofe (119,57-64): Letra HET – A MISERICÓRDIA
Minha herança
- Eu disse: Minha parte é o Senhor. / Por isso, guardo as tuas palavras.
- De todo o coração aplaquei tua face: tem piedade, segundo a tua promessa.
- Examinei meus caminhos, / voltei meus passos para teus ensinamentos.
- Eu me apresso, não quero tardar / em guardar teus mandamentos.
Meu “lote”, ou seja, minha parte da herança, é o próprio Senhor: assim diziam os levitas, que não tinham parte na repartição da Terra prometida (cf Nm 18,20). Aqui, o salmista, levita ou não, afirma que sua vida está centrada em deus. Por isso, ele confia em poder “aplacar” a face de Deus, pede piedade, compromete-se em “examinar” seus próprios caminhos e dispõe-se a “apressar-se” no cumprimento dos mandamentos.
Os laços dos ímpios
- Os laços dos ímpios me envolveram, / mas não esqueci tua lei.
- No meio da noite levanto-me para te louvar / pelos teus justos julgamentos.
Os “ímpios”, com suas armadilhas, põem o salmista à prova, mas não conseguem fazê-lo esquecer-se da Lei. Pelo contrário, até no meio da noite ele se levanta para louvar a Deus, prática depois institucionalizada, e ainda hoje observada em certas ordens contemplativas.
A tua misericórdia
- Sou amigo de todos os que te temem / e observam teus preceitos.
- Da tua misericórdia, Senhor, está cheia a terra: / ensina-me teus decretos.
O v. 63, proclamando a amizade do salmista com os “tementes” a Deus, contrasta com o v. 61, no qual ele denuncia as armadilhas dos “ímpios”. O versículo final, de amplidão inesperada, exalta a misericórdia divina que se estende “por toda a terra”. Dessa misericórdia são instrumentos os “decretos” divinos. É por isso que o salmista dispõe-se a aprofundá-los, deixando-se “ensinar” por Deus.
Pe. Ney Brasil Pereira
Professor emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC
Para refletir: 1) Que é o “legalismo”? Jesus demonstra-se “legalista” nos evangelhos?
2) “Seguir a Jesus” é seguir o caminho dos mandamentos? Como?
3) Que significa, hoje, “falar dos ensinamentos de Deus” “diante dos reis”?
4) Qual a importância da memória na vida de fé?
5) Em que sentido “a terra toda” está “cheia” da misericórdia do Senhor?
Por: Pe. Ney Brasil Pereira – Professor Emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC