Padre Ney Brasil Pereira – Jubileu Sacerdotal de Diamante

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Padre Ney Brasil Pereira – Jubileu Sacerdotal de Diamante

DSC_5798Homilia na íntegra do Pe. José Artulino Besen, na Missa do Jubileu de Diamante Presbiteral do Pe. Ney Brasil Pereira, em 25 de fevereiro de 2016.

 

Roma – 1956 – Catedral de Florianópolis – 25 de fevereiro de 2016

 

Padre Ney, o texto de Oséias (6, 1-6), proclamado na primeira leitura, tem-lhe falado de modo particular, pois serviu-se dele em sua meditação como paraninfo para os últimos alunos formados pelo Instituto Teológico de Santa Catarina. E, no texto bíblico, o senhor foi tocado pela palavra: “Vamos conhecer, procuremos o conhecimento do Senhor: sua chegada é tão certa como o dia de amanhã. Ele virá como vêm as primeiras chuvas, como a chuvarada que encharca a terra”. Conhecer o Senhor é participar de sua vida, é fruto de um amor incessante que leva à vida plena que se conclui na ressurreição. Conhecer o Senhor é viver em sua misericórdia.

Dia por dia, ano por ano, Pe. Ney, o senhor aprendeu que Deus quer a misericórdia, e não sacrifício ritual; o conhecimento de Deus e não holocausto. Seu trabalho sacerdotal é sempre retornar, aprender a amar a cada pessoa, pois todos são importantes e o mundo necessita deles. No Evangelho proclamado, propõe-nos Jesus, o bom Pastor que é a Porta das ovelhas, e seu ministério continua sendo mostrar ao ser humano que há uma porta para a Vida, e essa porta é o Filho de Deus (Mt 10, 7-15).

Pe. Ney, em 25 de fevereiro de 1956, quando na Cidade de Roma, na Basílica de São Paulo fora dos Muros, a mais bela das Basílicas romanas, o Cardeal Aloisi Masella (+1970) lhe impôs as mãos, foi feito um juramento, não seu, mas do próprio Deus Pai que lhe declarou: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec” (cf. Hb 5, 4-10). Deus Pai, no humilde gesto da imposição das mãos, derramou em sua vida o Espírito Santo, para que vivesse na alegria eterna de participar do sacerdócio de Cristo. Deus jurou, e o senhor, acompanhado de outros 21 ordenandos, dos quais 3 catarinenses, fez seu o juramento.

O senhor, Pe. Ney, naquele distante e triunfante 1956, tinha do sacerdócio a mesma imagem que tinha de Jesus Cristo, se assim me é permitido expressar: o Cristo glorioso, triunfante, com seus anjos derrubando as oposições e dúvidas do mundo. Como sacerdote, era o senhor também um soldado destemido, combatendo com a vitória assegurada porque estava regendo a Igreja o Papa Pio XII. Com os pulmões estufados, os alunos do Pio Brasileiro cantavam: “Sobre o Trono de São Pedro, rege o Papa a Santa Igreja, sustentando atroz peleja contra as hostes infernais”. No Seminário de Azambuja entoávamos um hino mais animador ainda: “O averno ruge, enfurecido, Altar e Trono quer destruídos. De mil soldados, não teme a espada, quem pugna à sombra da Imaculada”. E isso “do Prata ao Amazonas, do mar às cordilheiras”. Sem dúvida, o senhor viveu o primeiro sacerdócio na segurança disciplinar e monolítica da instituição católica e do triunfo da Barca de Pedro conduzida por Pio XII, com segurança, no mar revolto do pós-guerra, da descolonização da África e da Ásia, da guerra fria. O mundo ia mal, a Igreja católica navegava tranquila, como se nada lhe dissesse respeito.

Pe. Ney Brasil Pereira, seu ministério sacerdotal, de 1957 a 1970, foi consagrado à formação sacerdotal no Seminário de Azambuja. Difícil imaginar caminho diferente: a formação romana, seus dotes musicais, o domínio da língua portuguesa e de outros idiomas, o conhecimento de história, sua honradez de caráter e virtudes humanas e cristãs o credenciaram para esse trabalho. Aqui gosto de recordar a beleza e clareza de seu estilo: enquanto nos seminários vigorava triunfante a frase gongórica, o barroquismo colorido, o senhor já se expressava na frase enxuta, breve, harmoniosa e clara até hoje marca de seu estilo e de sua frase melódica.

Em Azambuja, o trabalho de Mestre de Canto supunha o Coral Misto, o Coro B, a Schola Gregoriana, a orquestra e a banda de música. Trabalho intenso e que às vezes varava a madrugada. Acima, falei do espírito que animava o neo-sacerdote Pe. Ney no momento da imposição das mãos pelo Cardeal Masella. Era um espírito sacerdotal, evidente, mas também espírito de cristandade, porque essa era a teologia, essa era a eclesiologia, essa era a leitura da Sagrada Escritura. O padre era um homem de Igreja, separado da história do mundo para agir na história eclesiástica. E veio o Pentecostes do Concílio do Vaticano II (1962-1965) que, antecedido pelo pontificado manso, humilde e feliz de João XXIII, trouxe um novo espírito: Igreja Povo de Deus, vida cristã inserida no mistério pascal, sacerdócio ministerial enxertado no sacerdócio do povo de Deus. Por terra caíram certezas seculares, a eficácia infalível do latim, a sacramentalidade das rubricas e a sacrossanta batina. Ingressávamos num renovado período da história católica e que nos fez permanecer no “versus Deum”, mas acrescido do “versus populum”. Bispos, padres, seminaristas e leigos voltavam aos bancos escolares da fé católica, num momento em que tudo parecia adquirido definitivamente. As tradições que quase ocultavam a grande Tradição foram purificadas para que pudéssemos contemplar e viver melhor a lancinante agonia do Cristo crucificado e sua Beleza e Glória sem fim (João Paulo II, NMI) na história da Igreja e na história do mundo.

Pe. Ney, o senhor abraçou a renovação conciliar em seu ministério e, com o clero catarinense, mereceu um título de glória: a fidelidade eclesial. À época não conhecemos nenhum padre saudosista, nenhum padre crítico da renovação, nenhum padre agarrado à batina ou ao colarinho, nenhum padre lavando as toalhas do altar com as lágrimas da saudade do antigo ritual. Essa unidade foi fruto da nossa formação e da ação dos bispos catarinenses, citando, para nós, os nunca suficientemente recordados Dom Joaquim Domingues de Oliveira e Dom Afonso Niehues, sepultados nesta Igreja catedral e pela comunhão dos santos participando desta Liturgia.

O senhor, Pe. Ney, era um músico preparado, competente, mas escondido na periferia do Brasil que era o glorioso Vale de Azambuja. Mas, foi descoberto e chamado a colaborar na renovação da música sacra no Brasil. Integrado na Comissão Nacional de Liturgia e Música Sacra da CNBB, com Côn. Amaro Cavalcanti, Pe. José Alves, Frei Joel Postma, Pe. Reginaldo Veloso, Irmã Míria Kolling e outros, iniciou a colaboração na grande obra de renovação. A cada mês recebíamos Fichas pastorais com novos hinos para a Liturgia. Víamos desfalecer o canto gregoriano e surgir novo tipo de canto, chamado de “pastoral”: texto bíblico-litúrgico, apropriado para cada momento da Celebração. O senhor dedicou-se aos cantos para a Liturgia da Semana Santa, gravados em disco e nos quais se esconde, talvez, sua mais bela melodia: “Onde o amor e a caridade, Deus aí está”. E, para uso no Seminário, compôs as partes móveis das principais festas do ano litúrgico, agora adormecidas no Arquivo e esperando a ressurreição.

Foram décadas de empenho, de encontros nacionais, regionais e arquidiocesanos dos quais sempre participou. É verdade que, na letra e na melodia, o senhor nunca deu espaço ao popularismo e sentimentalismo que triunfaram nas décadas de 80 em diante, com música demais e liturgia de menos. Hoje procura-se retomar o fio vigoroso e trabalhado daquela época de renovação e faz lembrar a competência de uma equipe organizada em nível nacional e não reduzida a movimentos religiosos.

O tempo passou, tinha vivido 14 anos de ministério no Seminário e houve a oportunidade de realizar um sonho das primícias sacerdotais: frequentar o Pontifício Instituto Bíblico. Deixou tudo e ficou em Roma de 1970 a 1973: teve de mergulhar nos estudos, sofrer com o hebraico, sem descanso, assimilando a ciência bíblica pela sabedoria dos grandes mestres, também fautores da renovação dos estudos bíblicos.

Ao retornar, em meados de setembro de 1973, seu trabalho estava agendado: professor no Instituto Teológico de SC – ITESC, onde lecionou por 42 anos, décadas de muita paciência, silêncio e humildade diante de alunos que viviam o espírito revolucionário de Medellín e Puebla, bem intencionados, claro, mas nem sempre caridosos e educados. O senhor, Pe. Ney, suportou esses anos difíceis sempre fiel à ciência bíblica e teológica séria, perseverando no caminho pedagógico proposto pela Igreja, sem modismos, sem saudosismo. Teve a seu lado o grande sacerdote Pe. Paulo Bratti que, diferente do senhor, servia-se melhor das artes diplomáticas.

Esse exigente ministério esteve unido à assistência pastoral nos presídios, à regência do Coral Santa Cecília da Catedral Nossa Senhora do Desterro, ao atendimento quase diário a convites para a celebração da Missa, especialmente junto às Irmãs da Divina Providência.

Silenciosamente, seu nome penetra no mundo bíblico brasileiro e, por seu conhecimento linguístico e teológico, colaborou e colabora na tradução vernácula da Sagrada Escritura, colaborou com a Bíblia de Jerusalém, da Paulus,; com a Bíblia da LEB/Loyola; com a Bíblia da Vozes; com a TEB, Tradução Ecumênica da Bíblia e, finalmente, na Bíblia da CNBB.

O senhor foi privilegiado no ministério presbiteral: viveu e participou ativamente na renovação litúrgica e bíblica no Brasil.

Atento às suas qualidades, em 2001 o Papa João Paulo II nomeou-o membro da Pontifícia Comissão Bíblica, nomeação confirmada e renovada por Bento XVI, oferecendo-lhe a graça de estar a serviço da Santa Sé até 2013, já com Papa Francisco.

Até aqui me referi a seu ministério presbiteral como realização de grande serviço eclesial: música sacra, estudo do texto bíblico, formação de seminaristas. Todo esse dedicado trabalho pode apresentar aspecto de grandeza ou de fama merecida mas, para isso tudo não necessitaria ser padre, pois é fruto de seu esforço e dons naturais bem aproveitados. Devo falar de algo muito pequeno, humilde, silencioso, pouco sentido pelas pessoas, pois preferem admirar as importâncias intelectuais que dão fama.   Quero falar do sacerdócio católico, da obra do Espírito Santo.

Pe. Ney, naquele dia 25 de fevereiro de 1956, pela imposição das mãos do Cardeal Masella, recebeu o Espírito Santo             que o fez padre, sacerdote, ainda numa visão gloriosa do sacerdócio católico. O mesmo Espírito Santo, porém, acompanhou seus passos, iluminando e aprofundando a cada dia a vivência do ministério ordenado.

A imposição das mãos me faz lembrar a ação do Espírito Santo, invocado como pai dos pobres, sendo ele mesmo pobre. Ele é quase invisível, não lhe conhecemos o rosto: a obra leva a assinatura do artista, mas não lhe mostra a face. O Espírito está em todo o universo e em todos os corações, pois é o artista com o qual o Pai cinzela sua obra. Uma representação bíblica é a pomba. O senhor mesmo escreveu em texto publicado: assim como o Filho é simbolizado pelo manso cordeiro, de modo análogo o Espírito o é pela silenciosa, graciosa e pacífica pomba. Tudo na Trindade é amor, suavidade, paz, delicadeza.

Na liturgia, o Espírito faz, do Filho, o Senhor pobre, pão para os pobres de todas as periferias da vida. Ele vai além: torna Deus pobre e o pobre, Deus: “Tudo o que fizestes a um desses pequeninos é a mim que o fizestes…” (Mt 25,40).

Como padre, há 60 anos o senhor é um ser litúrgico e a finalidade da liturgia é gerar a Igreja da compaixão, à imagem de Deus. Escreveu em 2005 que “uma destas graças imerecidas da minha vida é este privilégio, sublime, de presidir diariamente o rito eucarístico”. Na Liturgia a Igreja se transforma na sarça ardente, da qual ninguém pode se aproximar sem “ver a miséria do povo e ouvir seus gritos” (cf. Ex 3,7). Deus é inacessível a quem não se deixa trabalhar pelo Espírito Pai dos pobres. O liturgista Jean Corbon (1924-2001) nos lembra que os pobres caminham para debaixo do altar na grande liturgia eterna, conforme lemos no Apocalipse (6,9ss): o altar do holocausto se transforma no altar dos pobres, da compaixão, onde gritarão os injustiçados: “Até quando, Senhor, tardarás a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?”.  No altar de sua celebração estão presentes os presos, os pobres, moradores de rua, os doentes, os anciãos, o povo a que o senhor visitou e consolou. Estão presentes, sempre e felizes, sua mãe Maria da Graça Parreira e seu pai Antônio Pedro Pereira.

Naquele dia da ordenação o senhor escutou discursos e poesias chamando-o de outro Cristo, revestido de poder de Cristo, de igual poder tal qual Jesus, tão poderoso que com uma palavra perdoa pecados e com outra faz do pão e do vinho Corpo e Sangue do Senhor. Escutou que valia a pena gastar a sola do sapato para beijar a mão do sacerdote. E muitas outras glórias, avalizadas pelos brocados dourados das vestes sacerdotais.

Devemos dizer que o sacerdócio é o mais humilde dos sacramentos, que o padre é um pobre a serviço do pobre Espírito Santo e a serviço dos que têm fé, os mansos e humildes.

Na Ordenação, invoca-se o Espírito Santo para o serviço diaconal, presbiteral e episcopal. O Espírito concede a alguns membros da Igreja a energia eclesial mais escondida e pobre, que é colocá-los a serviço das outras epícleses sacramentais. Estes pobres homens ordenados bispos, presbíteros e diáconos são servos da Igreja, pastores que dão a vida pelos seus. A ordenação não é glória, mas humilde serviço para que o Espírito continue na Igreja do Senhor.

A grandeza de seu ministério é vivida na rotina diária e humilde das celebrações, onde cada sacramento é obra do Espírito que se serve da sua voz e das mãos sacerdotais.

Na Eucaristia, o Espírito Santo é invocado para que as oferendas sejam Corpo e Sangue do Senhor. Nela se realiza a comunhão com a Trindade, com a comunidade, o perdão dos pecados e a comunhão eucarística, sustento e remédio para a vida cristã. Realiza o mistério da divinização do homem: Cristo-homem-pão no Espírito transforma o homem em Cristo e em pão para os irmãos. O sacramento do altar é o sacramento do irmão (João Crisóstomo).

E hoje, Pe. Ney, o senhor agradece ao Deus Trindade pela graça que lhe concedeu de ser um pobre a serviço do Espírito Santo, de viver o esforço diário da simplicidade e da pobreza. Juntamente com os presbíteros, bispos e diáconos aqui presentes, também invocamos: “Vinde, Pai dos Pobres!”.

Hoje agradece ao pai Antônio Pedro Pereira, que deixou-lhe a imagem do homem forte, retilíneo, de honestidade a toda prova, falante, ativo, líder por natureza, homem de fé, provado nos últimos três anos de vida por um câncer que o foi derrubando e destruindo fisicamente devagar, de modo cruel, e que ele suportou com paciência heroica. O senhor o assistiu em seu leito de morte, no Hospital de Caridade, aos 29 de julho de 1963. Ele tinha 65 anos de idade.

Agradece sua mãe, Maria da Graça Parreira, uma mulher sofredora, que passou quase a metade da vida em hospitais, afastada dos filhos, de quem sentia muita falta. Pelo menos seus últimos anos foram mais tranquilos, tendo ela vindo para a casa  de um dos filhos, onde veio a falecer repentinamente, em 7 de dezembro de 1971, aos 71 anos de idade. De sua mãe o senhor guarda com carinho as palavras – da sabedoria e piedade popular – que ela, apesar de tudo o que sofreu, escrevera num bilhete: Deus tem mais para dar do que tem dado. E o senhor, ainda tem mais para dar do que tem dado.

Nesse momento faço minha a voz de toda a Igreja enriquecida por seu ministério, de nosso clero e nosso povo, para dizer: “muito obrigado, Pe. Ney”.

Pe. José Artulino Besen

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