Nestes dois salmos, percebemos bem a diferença entre a ação de graças pessoal, expressa no Sl 116, e o louvor gratuito, próprio dos hinos, como é o caso do minúsculo Sl 117. No Sl 116, o orante recorda as desgraças das quais Deus o livrou, como nelas pediu auxílio e foi escutado, relembra sua confiança passada e verbaliza seu agradecimento presente, concluindo com a promessa de expressar esse agradecimento em público, ritualmente. De que desgraças foi libertado? Através de várias metáforas, ele faz alusão a um extremo perigo, por doença ou outra causa. Assim, menciona “morte e abismo”, “tristeza e angústia” (v. 3), “enfraquecimento” (v. 6), “lágrimas e perigo de queda” (v. 8), “sofrimento” (v.10), “grilhões” (v.16). No conjunto, impressiona-nos a intensidade do seu sentimento. Se a ação de graças que ele promete será comunitária, a oração é inteiramente pessoal.
Quanto ao brevíssimo Sl 117, impressiona-nos a síntese extraordinária e a imensa abertura de seus apenas dois versículos. Embora exaltando a misericórdia do Senhor para com o seu povo – “para conosco” – o convite do salmista ao louvor não se restringe a Israel, mas se estende a “todas as nações”, a “todos os povos”.
- SALMO 116 (114 e 115): QUE RETRIBUIREI AO SENHOR?
- Eu amo o Senhor
- Eu amo o Senhor, / porque Ele escuta a minha voz suplicante.
- Pois inclinou para mim seu ouvido, / no dia em que eu o invoquei.
O salmo começa com uma declaração de amor pessoal a Deus – eu amo o Senhor – semelhante à do início do Sl 18, atribuído a Davi. São os dois únicos casos encontrados no saltério, nos quais o salmista, sentindo-se amado, porque protegido e libertado por Deus, começa logo expressando-lhe o seu amor. Notar, a propósito, o imperativo do amor a Deus “com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças”, no livro do Deuteronômio (Dt 6,5). Aqui, esse amor pessoal é motivado pela escuta divina à “voz suplicante” do salmista, pela proximidade de um Deus que “se inclina para ouvir”, como no Êxodo ao clamor do seu povo, aqui, à súplica do seu servo.
Os laços da morte
- Os laços da morte me apertavam, / eu estava preso nas redes do Abismo,
- / tristeza e angústia me oprimiam.
Este versículo resume a situação descrita mais amplamente no já citado Sl 18 (vv.5-6). O salmista sentia-se como sufocado, quase enforcado pelos “laços da morte” e enredado nas malhas infernais, oprimido pela angústia e tristeza.
Por favor, Senhor!
- Então invoquei o nome do Senhor: / “Por favor, Senhor,
- salva a minha vida!”
A súplica é expressa de forma insistente – “por favor” – recorrendo ao “nome” do Senhor, Adonai, mencionado na invocação. E o pedido é essencial: “Salva-me, salva a minha vida!”
Clemente, justo, misericordioso
- O Senhor é clemente e justo, / o nosso Deus é misericordioso.
- O Senhor protege os incautos: / eu fraquejava, e Ele me salvou.
O salmista desdobra o “nome” do Senhor, conforme a revelação feita a Moisés no Sinai (Ex 34,6). Aos atributos de “clemência” e “misericórdia”, ele acrescenta aqui a “justiça”, como no Sl 112,4, uma justiça que liberta os injustiçados. Quanto aos “incautos”, são os “simples”, aos quais se refere várias vezes o livro dos Provérbios. O salmista recorda novamente sua situação aflitiva: ele “fraquejava”, e Deus o salvou.
Volta, minha alma!
- Volta, minha alma, à tua paz, / pois o Senhor foi bom para contigo!
Esperaríamos logo, aqui, a expressão do agradecimento. Mas o salmista olha para dentro de si, e se exorta a si mesmo a recuperar a paz, agora que o sofrimento passou, pois o Senhor “foi bom” para com ele, demonstrou-lhe sua bondade.
Não mais a morte, nem lágrimas
- Ele me libertou da morte, / livrou meus olhos das lágrimas,
- / preservou da queda os meus pés.
Como no v. 3, mas agora de maneira positiva, o salmista emprega três metáforas para referir-se à angústia passada. A morte e as lágrimas reaparecem, mas superadas, como em Isaías 25,8, texto retomado depois no Apocalipse: “Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, e a morte não existirá mais…” (Ap 21,4)
Caminharei na presença do Senhor
- Caminharei na presença do Senhor / na terra dos viventes.
O salmista expressa a certeza de continuar a viver – a caminhar – “na presença do Senhor”, isto é, protegido por Ele, que não o perde de vista. A “terra dos viventes” é esta terra superior, à luz do sol, contraposta à região subterrânea dos mortos.
Mantive a fé
- Eu mantive a fé, mesmo dizendo: “É demais meu sofrimento”.
- Eu dizia, na hora da aflição: “O ser humano é mentiroso”.
Recordando novamente a situação passada, o salmista confessa ter comprovado, também ele, que o ser humano, por ser “mentiroso”, não é confiável. Por isso mesmo, ele “manteve a fé”, mesmo sob o peso do sofrimento. Notar, porém que a “inconfiabilidade” do ser humano é relativa: seria impossível a vida social, familiar, sem uma confiança humana mútua. Nesse sentido, entenda-se a afirmação de Jr 17,5, lendo-se o versículo do profeta até o seu final.
Que retribuirei?
- Que retribuirei ao Senhor / por todo o bem que me fez?
- Erguerei o cálice da salvação / invocando o nome do Senhor.
- Pagarei minhas promessas ao Senhor / diante de todo o seu povo.
Entenda-se bem a “retribuição”. Evidentemente não se trata de “restituir” alguma coisa ao Senhor, o que não é possível, e por isso mesmo o salmista se pergunta como fazê-lo. A solução está no testemunho do seu agradecimento, “diante de todo o povo”, testemunho ritualizado no “cálice da salvação”, erguido em assembleia litúrgica. É um cálice oposto ao “cálice da ira”, que Jerusalém culpada teve de beber (Is 51,17) e que, segundo o Apocalipse, será também a parte da ímpia Babilônia (Ap 16,19). Para nós, cristãos, é o “cálice da nova aliança” (Mt 26,27), o “cálice da bênção” do Senhor (1Cor 10,16).
A morte/vida preciosa
- É preciosa aos olhos do Senhor / a morte dos seus santos.
Este versículo é aplicado na liturgia à morte dos mártires, cujo sacrifício é “precioso” aos olhos do Senhor, por ser a suprema prova do amor (cf Jo 15,13). Na boca do salmista, porém, o texto exprime o valor que Deus dá à vida dos seus servos, isto é, a morte deles lhe “custa caro”, pois ela significaria a diminuição do número dos que, continuando a viver, continuam a louvá-lo: os mortos, no Xeol, não mais o louvam.
Sou teu servo
- Sim, Senhor, sou teu servo, / teu servo e filho de tua serva:
- / quebraste meus grilhões.
Os hebreus, no Egito, eram escravos: o Senhor os libertou da escravidão, conduzindo-os, porém, ao serviço da “lei da liberdade” (cf Tg 2,12). Aqui, o salmista, reconhecendo ter sido libertado “dos grilhões” da morte, reafirma a sua condição de “servo”, mas do Senhor, servindo-o na liberdade “à qual Cristo nos chamou” (Gl 5,13).
No meio de ti, Jerusalém
- Vou te oferecer um sacrifício de louvor / invocando o nome do Senhor.
- Pagarei minhas promessas ao Senhor, / diante de todo o seu povo.
- Nos átrios da casa do Senhor, / no meio de ti, Jerusalém.
Depois de ter praticamente retomado os vv. 13-14, substituindo o “cálice” pelo “sacrifício de louvor”, o salmista conclui dirigindo-se a Jerusalém em segunda pessoa, expressando-lhe, no desterro, todo o afeto e saudade de um exilado. Este pormenor abre o salmo a uma leitura comunitária. A salvação da morte é o retorno à pátria. É “preciosa” ao Senhor a vida do seu povo, que não sabe, mas quer, de qualquer maneira, dar as devidas graças ao seu Libertador.
SALMO 117 (116): LOUVAI O SENHOR!
- Louvai o Senhor, nações todas! / Aclamai-o, todos os povos!
- Porque prevaleceu sobre nós a sua misericórdia,
- / e a fidelidade do Senhor perdura para sempre.
Neste salmo tão breve, chama-nos a atenção um detalhe: a motivação é nacional, “nós”, mas o convite é universal, a “todas as nações”, “todos os povos”. Por que motivo as “nações” iriam louvar a Deus pelos benefícios feitos a Israel? Não sentiriam a eleição dos judeus como uma discriminação? São Paulo, no final da carta aos romanos (Rm 15,7-12), responde que não, porque eles também, todos os povos, são alcançados pela misericórdia e fidelidade de Deus para com seu povo. Em Cristo, os povos todos já formam um só povo, e todas as nações são acolhidas na mesma misericórdia e fidelidade do Senhor.
Não é por nada que uma das mais belas composições musicais de todos os tempos, o “Laudate Dominum” das “Véspera Solenes” de Mozart, inspirou-se neste salmo: às palavras do terníssimo solo de Soprano – a voz de Israel – responde, num eco grandioso, o “Glória ao Pai” do coro de todas as nações.
Para refletir: 1) Que diz da declaração de amor pessoal a Deus, no início do Sl 116?
2) Como manter a fé, como o salmista, mesmo no mais angustioso sofrimento?
3) É possível “retribuir” a Deus os seus benefícios? Como o faz o salmista/
4) De que modo é “preciosa”, aos olhos do Senhor, a morte dos seus servos?
5) Que mais o impressiona no brevíssimo Salmo 117?
Por: Pe. Ney Brasil Pereira – Professor Emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC