Estes dois breves salmos, embora sendo de gêneros literários diversos, pois o primeiro é um hino, e o segundo é uma bem-aventurança, apresentam várias convergências, que fazem deles como dois irmãos gêmeos. Se o primeiro exalta as “obras de Deus”, o segundo elogia as “obras do justo”. Ambos os salmos são “acrósticos”, isto é, cada “hemistíquio” (cada metade do versículo) começa com uma letra do alfabeto, em sequência. Como os dois últimos versículos são divididos em três hemistíquios, temos um total de 22 hemistíquios, cada um começando com uma das 22 letras do alfabeto hebraico. Isso, porém, como se trata do alfabeto nessa língua, só se pode notar no texto original, desaparecendo esse artifício nas traduções. Quanto à composição alfabética, que se encontra em mais salmos, o caso mais famoso é o do salmo 119, com 22 estrofes, cada estrofe com 8 versículos, todos os oito começando com a mesma letra. Imagine-se a criatividade literária desse autor!
SALMO 111 (110): AS OBRAS DE DEUS
Logo após o “Aleluia” litúrgico, expressão hebraica que significa “Louvai ao Senhor”, o salmista exprime claramente seu propósito: ele sente-se impelido a “dar graças”, bendizer a Deus, e isto não sozinho, mas no meio da comunidade. Após a breve introdução do v. 1, segue o corpo do salmo, dos vv. 2 a 9, referindo-se às “obras”, “feitos”, “maravilhas”, do Senhor, polarizadas pelo tema da Aliança, mencionada no v. 5 e no v. 9. Outro tema reiterado é o da perpetuidade, evidente na repetição da locução adverbial “para sempre”, nos vv. 3, 6, 9, 10. A conclusão do salmo, no v. 10, é sapiencial: diante das obras e da fidelidade do Senhor, não há como não “temê-lo”, sendo-lhe fiel, para poder louvá-lo “para sempre”.
De todo o coração
- De todo o coração darei graças ao Senhor, / na reunião
dos justos e na assembleia.
A expressão “de todo o coração” é típica do Deuteronômio, e tem seu lugar privilegiado em Dt 6,5, na formulação do “primeiro mandamento”: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças”. Cada israelita recitava estas palavras logo após o “Shemá”: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor, é um só” (Dt 6,4), incitando-se a si mesmo ao amor total a Deus. Aqui, o salmista dispõe-se ao louvor mais intenso e o mais público possível, unindo-se ao louvor de outros “justos”.
A atenção dos que amam
- Grandes são as obras do Senhor, / merecem a atenção dos que as desejam.
Uma das mais importantes atitudes de quem ama é a atenção aos gestos do amado. Assim, os que verdadeiramente amam a Deus não podem deixar de perceber, mesmo nos menores detalhes, a grandeza das suas obras, desejando contemplá-las: quer no esplendor do sol, quer na humildade da flor do campo.
A justiça que perdura
- Suas obras são esplendor e beleza; / sua justiça perdura para sempre.
Entre as obras “esplêndidas e belas” do Senhor, o salmista destaca sua “justiça”. É a justiça benfazeja, a que atua em favor do necessitado e liberta o oprimido, sem deixar de reprimir o opressor.
Fidelidade à Aliança
- Faz recordar os seus prodígios: / o Senhor é misericordioso e compassivo.
- Dá o alimento aos que O temem, / recordando-se sempre de sua Aliança.
- Mostrou a seu povo o poder de suas obras, / dando-lhe a herança das nações.
O próprio Deus, que é “misericordioso e compassivo” (cf Ex 34,6), faz com que seus prodígios não sejam esquecidos. Ele mesmo não se esquece da Aliança com seu povo, a qual se revela constantemente: quer no alimento diário, quer na posse da terra prometida, a “herança das nações”.
Santo e temível é seu Nome
- As obras de suas mãos são verdade e justiça, / todos os seus preceitos
merecem confiança.
- São imutáveis nos séculos, para sempre, / executados com fidelidade e retidão.
- Enviou a seu povo a redenção, / estabeleceu sua aliança para sempre.
/ Santo e temível é seu nome.
Depois de referir-se mais uma vez às “obras” de Deus, o salmista exalta seus “preceitos”, “confiáveis” porque “imutáveis”, e por isso mesmo dignos de serem fielmente observados. A seguir, numa nova referência à Aliança, irrevogável (cf Rm 11,29), ele canta a “redenção”, ou seja, a libertação, alcançada. Por tudo isso, o Nome do Deus de Israel, isto é, Ele mesmo, é “santo e temível”, devendo por isso mesmo ser “santificado”, como pedimos no Pai-nosso.
O louvor que permanece
- O princípio da sabedoria é o temor do Senhor; / sábio é aquele que lhe é fiel; /
seu louvor permanece para sempre.
Este versículo, começando com o conhecido provérbio do “temor do Senhor” como “princípio”, ou “chave”, da Sabedoria, conclui com a certeza de que o louvor do justo, aquele que é sábio e fiel, permanece para sempre.
SALMO 112 (111): AS OBRAS DO JUSTO
O título deste salmo poderia ser: “A bem-aventurança do justo”, que é o tema de praticamente todo o seu texto, com exceção do contraste expresso no versículo final. Todo o salmo, alfabético como o anterior, descreve os motivos desta bem-aventurança, formulada também no v. 5. Falando em “bem-aventuranças”, logo vêm-nos à mente as bem-aventuranças do Senhor Jesus, formuladas no início do sermão da Montanha, em Mateus (Mt 5,3-9), e no início do sermão da Planície, em Lucas (6,20-23). Entre os salmos, o primeiro deles é também uma bem-aventurança, expressa nos seus três primeiros versículos: “Feliz é aquele que não segue o conselho dos ímpios…” (Sl 1,1-3), aos quais se contrapõe a infelicidade, ou seja, a “mal-aventurança” dos maus, descrita nos três últimos versículos (Sl 1,4-6). O título – “As obras do justo” – foi escolhido porque são essas “obras” que motivam a bem-aventurança proclamada.
A felicidade do temente a Deus
- Feliz quem teme o Senhor / e muito se alegra nos seus mandamentos.
- Poderosa sobre a terra será a sua descendência, / a posteridade dos justos
será abençoada.
- Na sua casa há riqueza e bem-estar, / e sua justiça permanece para sempre.
O primeiro versículo retoma e completa o que o final do salmo anterior diz sobre o “temor de Deus”: é o respeito a Ele, a reverência, que se concretiza na observância alegre dos seus mandamentos. Resultado: posteridade abençoada, depois, e prosperidade e fartura, agora. Quanto à “justiça” que permanece, a justiça do justo, dois sentidos são possíveis: é a sua perseverança na retidão, ou a perduração dos frutos da sua beneficência. Veja-se idêntica afirmação sobre a “justiça de Deus”, no v. 3 do salmo anterior.
A luz dos justos
- Surge nas trevas uma luz para os justos: / Ele é bom, misericordioso, e justo.
Este versículo retoma o que diz belamente o profeta Isaías sobre a irradiação da bondade do justo: “Quando repartires teu pão com o faminto e saciares a fome do indigente, brilhará a tua luz nas trevas, e a tua escuridão se tornará como o meio-dia” (Is 58,10). Notar que o sujeito da segunda frase é, primeiro, o próprio Deus, pois “só Deus é bom” (cf Mc 10,18)… mas o justo, pelo fato de ser bondoso, participa dessa bondade. E, por isso mesmo, sua luz se irradia.
Feliz quem é compassivo!
- Feliz quem é compassivo e empresta, / administra seus bens com justiça.
- Não vacilará para sempre, / o justo será sempre recordado.
- Não tem medo de notícias más, / seu coração é firme, confia no Senhor.
- Seu coração está seguro, nada teme, / até ele vencer seus inimigos.
- Ele reparte e dá aos pobres, / sua justiça permanece para sempre, /
seu poder se eleva na glória.
Aqui, o salmista dedica cinco versículos, isto é, a metade do salmo, a uma série de detalhes sobre a bem-aventurança do justo solidário: ele é feliz, não vacila, não tem medo, é exaltado – seu poder se levanta na glória – pois “sua justiça permanece para sempre”. Notar que esta última afirmação já foi feita no v. 3, sobre o justo, e no salmo anterior, também no v. 3, ela é dita do próprio Deus (Sl 112,3).
A mal-aventurança do ímpio
- O ímpio vê e se irrita, / range os dentes e definha. / Fracassa
a ambição dos ímpios.
Basta um versículo para o salmista descrever o fracasso dos ímpios, isto é, dos não tementes a Deus e não solidários. Querendo ou não, eles têm de reconhecer, mesmo “rangendo os dentes”, que o caminho da felicidade é a justiça, não o egoísmo.
Para refletir: 1) Em que sentido estes dois salmos, o 111 e o 112,
podem considerar-se “gêmeos”?
2) De onde vem a expressão “de todo o coração”, no início do Sl 111?
3) Em que sentido o nome de Deus é “santo e temível”?
4) O que é o “temor de Deus” e de que maneira se manifesta?
5) Qual é a “luz” dos justos, e alguns detalhes da sua bem-aventurança?
Pe. Ney Brasil Pereira – professor de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC
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