O ápice dos Evangelhos é o relato da morte e ressurreição de Jesus. Mateus o apresenta como uma história de contradições e paradoxos. A conspiração mesquinha das autoridades, para quem Judas promete entregar Jesus por 30 moedas (preço de um mero escravo), emoldura a generosidade, o amor e a devoção da mulher que unge Jesus com perfume precioso (26,3-16). O desmascarar da traição de Judas e o prever da fuga dos discípulos, e da negação de Pedro, emolduram a generosidade e o amor de Jesus que oferece, na ceia pascal, seu corpo como pão, seu sangue como vinho de uma perene presença e de uma fidelidade à eterna aliança (26,17-35). No Getsêmani, o sono dos discípulos contrasta com a oração vigilante de Jesus que, sabendo como a carne é fraca, fortalece-se no espírito para fazer a vontade do Pai, e não a sua. O beijo falso do traidor bate de frente com a expressão de verdadeiro afeto de Jesus: «amigo, para que estás aqui?» (26,49-50). No Sinédrio, tribunal judaico, o falso testemunho, a palavra ardilosa contrastam com o silêncio e a corajosa declaração de Jesus: «vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens do céu» (26,64). Revelação retumbante da sua identidade messiânica que as autoridades acolhem como blasfêmia.
Enquanto isso, diante de uma criada, Pedro tem medo de declarar-se seguidor do Mestre (26, 57-73); seu remorso, contudo, leva ao choro e ao começo da sua restauração (26,60s); enquanto o de Judas, o conduz ao suicídio desesperado (27,3s). Pilatos lava as mãos para se livrar do sangue de um justo, e o povo, ao contrário, pede que o sangue recaia sobre eles. Ressoa como uma maldição responsabilizar-se pela morte de Jesus, mas, para o único evangelista a recordar essa fala, esse sangue sacrificial é aliança de salvação oferecida a toda a humanidade (Ex 24,8). Jesus é injuriado, golpeado, ridicularizado, enquanto o vestem de rei e o coroam de espinhos, o paradoxo da ironia que esconde a verdade.
Mateus é o único evangelista a mencionar a ressurreição de mortos no momento em que Jesus expira e entrega o espírito (27,45-54). Ele reflete que a morte de Jesus cumpre a promessa dos tempos messiânicos, onde os mortos tornariam a viver (Is 26,19; cf. os «ossos secos» que recebem o Espírito de Deus em Ez 37), e recorda como a morte de Jesus liberta os justos da morte (o grande paradoxo da fé: a morte de Cristo vence a morte e traz a vida plena). O não ver, a ausência do corpo («Ele não está aqui«!) é o primeiro ato de fé da grande verdade («Ele ressuscitou, conforme havia dito!», 28,6), que, somente depois, confirma-se com a visão dele na Galiléia (28,7).
Mateus é o único evangelista a recordar a farsa das autoridades para ocultar a ressurreição de Jesus, comprando o silêncio dos guardas do túmulo (28,62-66; 29,11-15). Com isso, o autor alerta para a afronta dos inimigos da ressurreição de Cristo, «até o dia de hoje» (28,15).
No relato da ascensão, que encerra o Evangelho, o narrador apresenta o grupo reduzido a 11 e, ainda, «alguns duvidaram», como um cenário pouco promissor. No entanto, Jesus ressuscitado, ao qual todo poder foi dado no céu e na terra, confia-lhes um grande legado: fazer todas as nações discípulas, ensinar o Evangelho, salvá-las pelo batismo em nome da Trindade. E uma grande promessa consoladora: «eu estarei convosco todos os dias…», confirmando ser o Emanuel («Deus conosco», 1,23). Mateus encerra, então, da forma como começou ao apresentar uma genealogia onde, mesmo por caminhos tortuosos, de homens e mulheres nem sempre fiéis, Deus foi conduzindo suas promessas. Mesmo quando o povo trai, nega, e mesmo mata seu Filho, Deus se mantém fiel ao seu amor perdoando, ressuscitando e salvando.
Artigo publicado na edição de dezembro de 2023 do Jornal da Arquidiocese, página 8.