Conhecendo o livro dos Salmos – 109 (108) – Por Pe. Ney Brasil

>
>
Conhecendo o livro dos Salmos – 109 (108) – Por Pe. Ney Brasil
Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.
Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.

Salmo 109 (108): Defende-me, Senhor!

Dizem os comentaristas que “este é um dos salmos mais difíceis” do saltério. Não pelos termos usados ou pelo sentido das frases, mas pela violência dos sentimentos aqui expressos. Que pessoas pronunciam semelhante texto? E como rezá-lo? Como Jesus o teria rezado?

Quanto à estrutura do texto, é claro que os primeiros cinco versículos (vv. 1-5) são pronunciados pelo orante, o qual, após rápida invocação de Deus, logo se refere a acusadores mentirosos, implacáveis e ingratos. Segue a parte mais longa do salmo, os vv. 6 a 19, expressando as “pragas”, as imprecações, que esses acusadores soltam contra o salmista. Enfim, após um versículo de transição – “Esta, a paga do Senhor àqueles que me acusam e que só dizem mal de mim” (v. 20) -, o próprio salmista volta-se de novo a Deus (vv. 21 a 29), pedindo-lhe que o defenda, liberte e salve, ao mesmo tempo  reprimindo e castigando seus inimigos.

Os dois versículos finais (vv. 30 e 31) referem-se a Deus na terceira pessoa, prometendo-lhe a ação de graças e o louvor “no meio da assembleia”, com uma motivação: porque Ele, o Senhor, se mantém “à direita do pobre, para salvá-lo”.

 

Não fiques mudo!

  1. Deus do meu louvor, não fiques mudo.

Há um forte contraste entre esta invocação ao “Deus do meu louvor”, a quem o salmista normalmente costuma louvar, e a súplica logo enunciada, antes uma reclamação, uma queixa, que um pedido: “Não fiques mudo”. Isto é, o salmista pede que Deus “não se faça de surdo” ao vozerio das calúnias e imprecações dos adversários. É uma queixa semelhante à que faz o profeta Habacuc, no início do seu livro: “Até quando, Senhor, ficarei clamando sem que me dês atenção? […] Por que me fazes ver tanta crueldade, e só ficas olhando a perversidade?  […] Por que contemplas em silêncio os malfeitores, o culpado que devora o inocente?” (Hab 1,2.3.13) Isto é, o silêncio de Deus, a sua não-intervenção, equivale a deixar o campo livre a seus inimigos…

Abrem a boca contra mim

  1. Pois abrem contra mim uma boca malvada e pérfida. / Falam-me

com língua mentirosa.

  1. Com palavras de ódio me rodeiam, / sem motivo combatem contra mim.

O orante descreve o vozerio dos inimigos com traços militares: “rodeiam”, como num cerco; “combatem” como numa batalha. É guerra verbal, cujas armas são a mentira e o ódio.

Pagam-me o bem com o mal

  1. Em troca de minha afeição, me caluniam, / enquanto oro por eles.
  2. Pagam-me o bem com o mal / e o amor com o ódio.

O salmista não deu motivo para esses ataques. Pelo contrário, deu provas de afeição, orou pelos adversários, fez-lhes o bem, amou-os. Eles, no entanto, retribuíram-lhe com a “lei do talião” às avessas…

As imprecações contra o salmista

  1. Eles dizem: “Seja instaurado contra ele o processo, / que o acusador

 fique à sua direita.

  1. Quando for julgado, que saia condenado, / e que seu apelo resulte

 em condenação.

  1. Que seus dias sejam abreviados, / que outro assuma o seu encargo.

As imprecações, ou “maldições”, são concebidas em oposição às “bênçãos”, e são consideradas eficazes pela ação de Deus, quando justificadas. Deus, porém, pode mudar a maldição em bênção, como o fez em relação às pretendidas maldições de Balaão (cf Nm 23 e 24). Aqui, “eles”, os caluniadores, começam por desejar que o processo, instaurado contra o salmista, o condene, até à morte, mesmo sendo inocente!

E, num versículo citado por São Pedro, na eleição de Matias (cf At 1,20), torcem para que “um outro assuma o seu encargo

Contra os filhos, a esposa, os bens

  1. Que seus filhos fiquem órfãos, / viúva, sua esposa.
  2. Que seus filhos fiquem errantes e mendigos, / expulsos de suas casas em ruínas.
  3. Que o credor lhe tome todos os bens, / e que os estrangeiros roubem

o fruto do seu trabalho.

  1. Que ninguém lhe demonstre compaixão, / que ninguém tenha dó de seus órfãos.

A imprecação alarga-se contra a família, que fica desamparada pela morte do marido e pai. Legal ou ilegalmente, gente estranha apodera-se dos seus bens.

Contra os descendentes e os ascendentes

  1. Que sejam exterminados seus descendentes / e que seu nome desapareça

 na próxima geração.

  1. Que o Senhor se lembre da culpa de seus pais, / e que o pecado de sua mãe

                                                                      jamais seja apagado.

  1. Que o Senhor os tenha sempre diante de si, / mas que retire da terra

a sua memória.

Os herdeiros deverão pagar os supostos delitos dos pais, ou seja, pagam suas consequências. Veja-se o Sl 79,8: “Não recordes contra nós as culpas dos nossos pais”.

Extirpada a descendência, fica abolida também a recordação, em geral ligada aos filhos e ao nome.

Imprecações motivadas

  1. Pois ele não se lembrou de exercer a misericórdia, / mas perseguiu o pobre

e o indigente  / e o homem de coração ferido, para matá-los.

  1. Ele amava a maldição: que ela venha sobre ele. / Não gostava da bênção:

que se afaste dele.

  1. Revestiu-se da maldade como de um manto: que ela entre nele como água /

 e, nos seus ossos, como óleo.

  1. Que ela lhe seja como veste que o envolva, / e como um cinturão

 que o aperte sempre.”

            Aqui, os caluniadores pretendem motivar  suas imprecações contra o salmista. Acusam-no de “não ter sido misericordioso”, de ter “amado a maldição”, de ter-se “revestido da maldade como de um manto”, e invocam contra ele simplesmente, mas implacavelmente, a lei do talião. Ele “foi mau”? Será devorado pela maldade. “Não teve misericórdia”? Não receberá misericórdia…

A lei do talião contra os acusadores

  1. Pois seja esta, da parte do Senhor, a recompensa de quem me acusa /

 e dos que falam mal de mim.

O salmista, injusta e cruelmente acusado, não consegue chegar ao ponto a que o Senhor Jesus chegou: “Pai, perdoai-lhes…” (Lc 23,34). Mas também não pretende, ele mesmo, vingar-se. Confia a Deus o encargo da “recompensa”, isto é, da punição, dos seus caluniadores.

Mas tu, Senhor…

  1. Mas tu, Senhor, meu Deus, trata-me pelo amor do teu nome! / Liberta-me,

conforme a ternura da tua bondade.

  1. Pois sou pobre e indigente / e meu coração está ferido dentro de mim.
  2. Como sombra que se alonga, eu vou indo; / atirado para longe

como um gafanhoto.

  1. Por causa do jejum, meus joelhos vacilam; / meu corpo emagreceu, descarnado.
  2. Tornei-me para eles alvo de insulto. / vendo-me, meneiam a cabeça.

Neste momento, muda o tom e o clima da oração. O estilo, agora, é dialogal: sente-se a relação pessoal do orante com o  seu Deus. Ele o invoca, reconhecendo antes de tudo a grandeza do seu Nome, e apelando para a “ternura da sua bondade”. A seguir, expõe com humildade a sua situação extrema: como “sombra que se alonga”, como um “gafanhoto enxotado”, como um faminto debilitado, como um indigente escarnecido…

Socorre-me, Senhor!

  1. Socorre-me, Senhor, meu Deus, / salva-me, segundo a tua bondade.
  2. E que eles saibam que foi tua mão, / que foste tu, Senhor, que o fizeste.
  3. Que eles maldigam, mas tu abençoes! / Que meus adversários fiquem

                                                           envergonhados, / mas o teu servo se alegre!

  1. Os que me acusam sejam revestidos de ignomínia / e recobertos da sua

                                                                      vergonha como de um manto.

Já concluindo sua oração, o salmista, depois de reiterar o pedido de socorro, expressa a sua certeza de que é Deus quem, afinal, conduz a história. E espera que seus inimigos, enfim,  mesmo se à força, um dia também o reconheçam. Embora eles maldigam, Deus abençoa: a bênção divina é mais forte que a maldição humana. E os caluniadores malvados vão terminar, queiram ou não, “recobertos da sua vergonha”.

Darei graças!

  1. Com minha boca darei graças ao Senhor, / e o louvarei no meio da assembleia.
  2. Pois Ele se mantém à direita do pobre / para salvá-lo dos que o condenam.

O salmo termina com a promessa do agradecimento e louvor “no meio da assembleia”. Isto é, o orante, como o do Salmo 22, expressa a certeza de que voltará ao convívio dos seus irmãos na fé para, com eles, na celebração litúrgica, louvar o Senhor, o Deus “do meu louvor” (v.1), o Deus que “se mantém à direita do pobre, para salvá-lo”.

Leia o salmo e medite: 

 1) Você achou estranho este salmo? Por quê?

2) Está certo reclamar contra Deus, pelo seu “silêncio”?

3) Que perigo representa a língua mentirosa, servindo ao ódio?

4) Como entender a reação do salmista, à luz do ensinamento de Jesus?

5) Como termina o salmo, apesar de todo o sofrimento do salmista?

 

Por: Pe. Ney Brasil Pereira – Professor de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

PODCAST: UM NOVO CÉU E UMA NOVA TERRA