SALMO 119 (118) – O AMOR À LEI (I)
Este é o mais longo de todos os salmos, formado por vinte e duas estrofes, cada uma de oito versículos, todo o conjunto constituindo bela demonstração do amor à Palavra divina, fervorosa expressão de entusiasmo pelo valor incomparável da Lei, dos mandamentos de Deus. Não é um salmo para ser rezado na totalidade desses cento e setenta e seis versículos (22 x 8), do primeiro ao último, mas, como o propõe a liturgia das Horas, é para ser degustado por estrofes, uma de cada vez.
Chama a atenção esse número dos versículos, oito em cada estrofe. A propósito, é espontânea a pergunta: por que não “sete”, o chamado número da perfeição? Por quê, sete versículos mais um? Certamente, o fato de que, dispondo de oito sinônimos de “Lei” – diversamente traduzidos: lei, testemunho, palavra, preceito, estatuto, norma, mandamento, decreto – o autor quis dedicar a cada um deles um versículo.
O salmo começa com uma bem-aventurança, que se estende pelos três primeiros versículos, continuando com reflexões, petições, exortações, propósitos, louvores, ações de graças, tudo girando em torno da Lei. Não há, porém, em todo o salmo, citação alguma de mandamentos ou oráculos divinos: Deus é interpelado em segunda pessoa, referido em terceira pessoa, mas não toma a palavra. Ele, com sua Lei, é o alvo do louvor.
1ª estrofe (119,1-8): ÁLEF – A FELICIDADE
Bem-aventurados
- Felizes os que procedem com retidão, / os que caminham na Lei do Senhor.
- Felizes os que guardam seus testemunhos / e O procuram de todo o coração,
- Os que não cometem iniquidades, / mas andam pelos seus caminhos.
Porta de entrada do longo salmo é esta bem-aventurança: a proclamação da felicidade daquele que cumpre a Lei do Senhor. Não se fala na recompensa. Apenas se reafirma a preocupação mais insistente dos escritos sapienciais: mostrar onde está e em que consiste a felicidade. A receita está expressa com seis afirmações, duas em cada versículo.
Teus decretos
- Promulgaste os teus decretos / para serem observados fielmente.
- Sejam seguros os meus caminhos / para eu guardar os teus estatutos.
Nesta primeira interpelação a Deus, o salmista o reconhece como autor de todos mandamentos – “decretos”, estatutos”, “a serem observados”. Ele é quem os “promulgou”. É o que confirmam todos os livros do Pentateuco, especialmente Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, por isso mesmo chamados, em seu conjunto, de “Torá” “a Lei”.
Vou te louvar
- Então, não terei de envergonhar-me / se tiver obedecido os teus mandamentos.
- Vou te louvar com um coração sincero / quando aprender tuas justas normas.
- Quero observar teus preceitos, / não me abandones jamais!
O salmista confia que “não terá de envergonhar-se”, contanto que obedeça aos mandamentos. De fato, a obediência é a prova da fé: “Não basta dizer “Senhor, Senhor”, como o adverte Jesus no final do sermão da Montanha (Mt 7,21). O salmista fala, também, de um aprendizado necessário, a fim de poder louvar o Senhor com sinceridade. E termina a estrofe com um propósito e um pedido.
2ª estrofe (119,9-16): BET – A VIDA PURA
Um jovem
- Como pode um jovem levar uma vida pura? / Guardando a tua palavra.
- De todo o coração te busco: / não me deixes desviar dos teus preceitos.
- Conservo no coração tuas promessas / para não te ofender com o pecado.
O “jovem” que aparece no v. 9 está indeterminado, referindo-se a qualquer um.
Mas podemos identificá-lo como o próprio salmista, a partir de sua experiência pessoal.
Essa “guarda da Palavra” faz lembrar a “força dos jovens” na primeira carta de João:
“Vós sois fortes, jovens, porque a palavra de Deus permanece em vós” (1Jo 2,14). Seguem os propósitos do salmista, expressos nos vv. 10 e 11, nos quais encontramos também o pedido: “Não me deixes desviar dos teus preceitos”.
Bendito!
- Bendito és tu, Senhor, / ensina-me teus estatutos.
O adjetivo “bendito” expressa a formulação de uma “bênção”, dirigida a pessoas, como a referente “àquele que vem em nome do Senhor” (cf Mt 21,9), ou ao próprio Deus, como no início do “Bendito” de Zacarias (Lc 1,68). É frequente nas orações da tradição rabínica. Aqui ela é seguida imediatamente do pedido: “Ensina-me teus estatutos!”
Com meus lábios
- Com meus lábios enumerei / todos os decretos de tua boca.
- Eu me alegro em seguir teus testemunhos, / mais que em todas as riquezas.
- Quero meditar teus mandamentos / e considerar teus caminhos.
- Nos teus estatutos me deleito: / não esquecerei tua palavra.
O v. 13 relaciona os “lábios” do orante com a “boca” de Deus: Deus começa o diálogo ensinando com sua boca os mandamentos; o ser humano aprende a recitá-los com seus lábios, para melhor gravá-los e pô-los em prática. A gravação na memória conduz à reflexão, à meditação orante (v. 15), a qual por sua vez traz prazer (v. 16).
3ª estrofe (119,17-24): GUÍMEL – AS MARAVILHAS DA LEI
Que eu viva!
- Sê generoso com teu servo; / e eu viverei, observando a tua palavra.
Invocando a generosidade de Deus, o orante apresenta-se como seu “servo”, servo humilde que se dispõe a obedecer, em tudo atento às expressões da vontade do seu Senhor. Isto lhe garantirá a “vida”, a qual depende da observância dos mandamentos, expressos na Palavra (cf Dt 6,24).
Abre meus olhos!
- Abre-me os olhos / para eu contemplar as maravilhas da tua Lei.
- Sou como o migrante na terra: / não escondas de mim teus mandamentos.
- Minha alma se consome / desejando teus decretos o tempo todo.
Ao contrário do “cego que não quer ver” (cf Jo 9,39-41), o orante, que se apresenta como “peregrino” em terra estranha, pede que o Senhor lhe “abra os olhos”, e “não lhe esconda” os mandamentos… Isto, para que ele possa entender melhor e, assim, “contemplar” devidamente as maravilhas da Lei. Este anseio o “consome”, num desejo contínuo.
Os orgulhosos e poderosos
- Ameaçaste os orgulhosos: / maldito quem se desvia dos teus preceitos.
- Afasta de mim a vergonha e o desprezo, / pois observei teus testemunhos.
- Reúnem-se os poderosos e me caluniam, / mas teu servo medita em
- tuas ordens.
- Sim, teus preceitos são minhas delícias, / meus conselheiros são
- teus estatutos.
“Orgulhosos” são os que se colocam “acima do bem e do mal”. Por isso mesmo, porém, desviando-se dos divinos preceitos, incorrem em maldição: são malditos. Quanto aos “poderosos” que, abusando do seu poder, caluniam o salmista, apesar de tudo não conseguem impedi-lo de continuar a ser fiel. Pelo contrário, ele persevera em deliciar-se nos “estatutos” da Lei.
4ª estrofe (119,25-32): DÁLET – O CAMINHO
Prostrado ao chão
- Estou prostrado ao chão: / dá-me vida conforme a tua palavra.
- Eu te expus meus caminhos e me respondeste, / ensina-me teus estatutos.
- Faze-me conhecer o caminho dos teus preceitos / e meditarei nos teus prodígios.
Esta estrofe começa com a menção de uma situação humilhante, que leva o salmista a confessar os seus “caminhos”, quem sabe, seus próprios “desvios”. Ele recebe, porém, a resposta do Senhor, que o confirma no caminho dos “preceitos”, confirmados pelos divinos “prodígios”.
Curvado pela tristeza
- Ando curvado pela tristeza: / levanta-me conforme tua promessa.
- Mantém longe de mim o caminho da mentira, / dá-me o dom da tua Lei.
- Escolhi o caminho da verdade, / ponho ante meus olhos tuas normas.
Nova confissão de abatimento e tristeza, superados pela confiança na “promessa” e pela renovada escolha do “caminho da verdade”, em oposição ao “caminho da mentira”. No v. 29, a bela referência ao “dom” da Lei, que não é peso, mas graça.
Eu não seja confundido
- Aderi a teus testemunhos, Senhor, / não permitas que eu seja confundido.
- Correrei pelo caminho dos teus mandamentos, / pois dilatarás meu coração.
Enfim, após o pedido humilde para que o Senhor o livre de ver-se “confundido”, envergonhado, frustrado, o salmista se reanima. Dispõe-se, então, a “correr” pelo caminho dos mandamentos, na certeza de que Deus lhe “dilatará” o coração, livrando-o de toda angústia.
Para refletir:
1) Como se deve rezar este longo salmo? qual é a sua porta de entrada?
2) Por que são 22 as estrofes, e oito, os versículos de cada estrofe?
3) Quem é o “jovem” do v. 9? Por que é preciso “recitar” as palavras da Lei?
4) Por que o salmista pede que o Senhor lhe “abra” os olhos?
5) Quem são os “orgulhosos” do v. 21? e os “poderosos” do v. 23?
Por: Pe. Ney Brasil Pereira – Professor Emérito de Exegese Bíblica na FACASC/ITESC