Pe. Raulino Reitz, patrono da ecologia catarinense

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Pe. Raulino Reitz, patrono da ecologia catarinense
Pe. Raulino Reitz em 1973

“Um gênio é uma grande paciência”, afirmou Dom Afonso Niehues, Arcebispo Metropolitano de Florianópolis, citando Dom Joaquim Domingues de Oliveira, na oração fúnebre por ocasião do sepultamento do Pe. Raulino Reitz. Há os que nascem gênios, como Mozart. E há os gênios que são construídos pelo trabalho metódico, perseverante, de uma vida inteira. Pessoas cuja genialidade consistiu em realizar um projeto na paciência cotidiana. Penso ser este o caso do Pe. Raulino. Durante 52 anos dedicou-se ao estudo da natureza, especialmente no campo da Botânica, dia por dia, ano por ano, no silêncio do gabinete ou da pesquisa de campo, nas dificuldades das viagens. E nisso foi feliz, pois realizou-se e viu o reconhecimento da comunidade nacional e internacional. A paciência fez dele o gênio.

Descendente da imigração alemã

Raulino Reitz nasceu em Antônio Carlos, SC em 19 de setembro de 1919, filho de Nicolau Adão Reitz e de Ana Wilvert Reitz. Foi batizado na capela do Louro, tendo como padrinhos Pedro Amâncio Konrad, famoso professor do Rachadel, e Filomena Reitz. A data foi perdida devido ao incêndio no Arquivo Paroquial de São Pedro de Alcântara.

Sua infância foi como a dos outros meninos do Alto Biguaçu: muito trabalho na roça, no engenho de açúcar e farinha, no pasto. Brincar, somente aos domingos, depois da Missa em São Pedro de Alcântara ou do Culto em Antônio Carlos.

Em 1937 foi matriculado na Escola Mista do Louro tendo como professora Delminda Simas Simão. Caminhava dois quilômetros levando a tiracolo a bolsa com a “pedra” (lousa preta de escrita) e o lanche de pão de milho com queijo e melado. Delminda aplicava castigos muito rigorosos na meninada, como ajoelhar no assoalho da escola, em cima de grossos grãos de areia. Surrava com vara de cutia, especialmente na barriga das pernas dos já ajoelhados. Sua mãe gritava, da cozinha: “Dá-lhe mais!”. Segundo quem o conheceu, Raulino não era nenhum exemplo de menino bem comportado. Vivia fazendo molecagens. De 1928 a 1931 foi-lhe professora Alvina Freiberger, formada complementarista (Ginásio) no Colégio Coração de Jesus de Florianópolis. Era professora experiente. Ensinava e educava com muito tato e psicologia. Promovia festinhas escolares, representações teatrais para alunos e pais.

Foi coroinha na Capela do Coração de Jesus, hoje a igreja matriz de Antônio Carlos, ajudando nas missas do irascível e santo pároco Pe. Nicolau Schaan.

Vocação sacerdotal

Estimulado pelos dois irmãos, Afonso terminando os estudos teológicos e João neo-sacerdote, ingressou no Seminário de Azambuja, Brusque, em 1932. Após doutorar-se em Teologia em Roma, o irmão Pe. João Reitz lecionava ali. Deu-lhe de presente o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de J.P. da Silva Bastos, com a dedicatória: “Meu caro Raulino: tens em tuas mãos um tesouro de imenso valor, porém, oculto. Trata de explorá-lo com constância, com livro à mão e a pena em punho. Teu irmão, que te quer”. Raulino usou-o até o fim da vida.

Permaneceu em Azambuja de 1932 a 1936, cursando o Ginásio e o Clássico. Ali recebeu uma formação sólida, alicerçada no amor à Igreja e na seriedade dos estudos. Foram seus Reitores Pe. Jaime de Barros Câmara (o primeiro Cardeal catarinense) e Pe. Bernardo Peters.

Os cursos seminarísticos de Filosofia e Teologia completou-os no Seminário Central de São Leopoldo, RS, de 1937 a 1943. Ali conheceu o Pe. Balduíno Rambo SJ, notável cientista botânico que lhe deu as primeiras instruções e o incentivo para os estudos botânicos. Em 1938, no segundo ano de filosofia, começou a coletar plantas que depois passariam a integrar o acervo do Herbário Barbosa Rodrigues.

Seus atestados de notas em São Leopoldo não revelam um aluno de aproveitamento excepcional. Vão de 6 a 9. Sua cultura foi feita mais de persistência do que de inteligência privilegiada.

Em 22 de junho de 1942 escreveu a Dom Joaquim pedindo a ordenação de subdiácono: “V. Excia. queira conceder, nas próximas ordenações, a este último servo de V. Revma. Excia. a graça tão ardorosamente suspirada desde a minha meninice”.

No curto espaço de 20 dias Raulino recebeu, na Catedral de Florianópolis, pela imposição das mãos do arcebispo Dom Joaquim Domingues de Oliveira, as três ordenações: Subdiaconato (15 de agosto de 1943), Diaconato (29 de agosto) e, Presbiterato (05 de setembro). Como lhe faltassem 15 dias para completar os 24 anos canônicos, recebeu a dispensa de idade. Houve certa pressa de Dom Joaquim, pois necessitava de um padre para auxiliar em Turvo. A Primeira Missa solene foi celebrada na Capela de Antônio Carlos, no dia da Pátria, 7 de setembro.

Ministério sacerdotal

Pe. Raulino não desempenhou as funções de pároco. No espaço de quatro anos Dom Joaquim nomeou-o vigário paroquial de quatro Paróquias: Turvo (10-09-1943 a 25-01-1944), Sombrio (25-01-1944 a 12-01-­1946), Itajaí (12-01-1946 a 25-11-1946), Orléans (25-10-1946 a 11-01-1947). De 1975 a 1986 foi vigário colaborador em Tijucas e de 1987 até a morte em Camboriú.

Como não é da competência do vigário paroquial escrever Livro do Tombo nem assinar correspondência oficial da Paróquia, não se tem notícias de sua atividade pastoral no início do sacerdócio. Realizava o que a pastoral do tempo exigia: visitas de desobriga, catequese, reuniões com os Congregados Marianos, Filhas de Maria, Apostolado da Oração. Muitas confissões, batizados, casamentos, andanças para visitar os doentes. Nas capelas de Tijucas e Camboriú era amigo do povo, gostando de conversar sobre a natureza. Seus sermões quase sempre abordavam temas de ecologia. Na festa de um Santo, gostava de discorrer sobre sua história, os locais onde viveu, especialmente se ele os tinha visitado pessoalmente.

Em Turvo teve como vizinho, e em Sombrio como colega, o irmão Pe. João Adão Reitz, homem de zelo apostólico inexcedível, preocupado com o desenvolvimento religioso, cultural, educacional, sócio-econômico e ecológico da comunidade. Não sabia gastar o tempo com o lazer. Resumia a vida em trabalhar por sua paróquia. Pe. Raulino deve ter aprendido dele o gosto pela ocupação integral do tempo com o trabalho.

Padre Raulino Reitz com Lyman Smith, seu amigo e maior sistematizador botânico dos EUA
Padre Raulino Reitz com Lyman Smith, seu amigo, e maior sistematizador botânico dos EUA
Professor e pesquisador

Vinte e quatro anos de seu ministério foram transcorridos no Seminário Menor Metropolitano de Azambuja (11-01-1947 a 14-05-1971) onde desempenhou as funções de Diretor de Ensino e Professor. Este período coincide com a “época áurea” dos estudos no Seminário: a formação ginasial e secundária em Azambuja rivalizava em mérito cultural com a de muitas Faculdades. Lecionou latim, inglês, alemão, espanhol, ciências naturais, história natural, biologia, religião, anatomia e fisiologia humana, física, química, agronomia, cosmografia, história das Américas, geografia geral e do Brasil e história geral.

Matéria de sua predileção foi a Cosmografia, que lecionou por 20 anos seguidos. Gostava das aulas práticas nas noites limpas, sem luar: seus alunos, nós precisávamos descobrir no céu o Cruzeiro do Sul, a Ursa Maior, o Escorpião, o Sagitário, as grandes constelações. Pe. Raulino, entusiasmado pela enésima vez com as mesmas estrelas, logo nos apontava as figuras celestes. A gente precisava de muita imaginação para fazer um Escorpião com tão poucas estrelas.

Não era professor de comunicação direta. Lia o Manual e tecia comentários, com algum exemplo. A cada aula, a chamada para avaliação do estudo pessoal. Era compreen­sivo nas notas. Não transparecia na sala de aula o entusiasmo pelas pesquisas que realizava em suas viagens pelo interior. Além do infalível Jeep que a gente via sair e chegar com o Pe. Raulino sobraçado de plantas, nunca aparentando cansaço, pouco podíamos divisar do que estava acontecendo.

Pe. Afonso Niehues, Reitor do Seminário (bispo e arcebispo a partir de 1959), sempre o favoreceu nas viagens de pesquisa. Programava suas aulas para o começo da semana, dispondo de quinta a domingo para as andanças científicas. O mesmo se diga do Reitor seguinte, Pe. Valentim Loch.

A imagem que Pe. Raulino deixou em nós foi de um homem em movimento, sempre compenetrado e ocupado. Nós o sentíamos como Diretor de Estudos nos fatídicos dias 7 e 8 de dezembro, dias de prestação de contas. No dia 7 passava ao Reitor a lista dos reprovados, que era lida ao meio-dia, no refeitório. E no dia 8, às 10 horas, a sessão solene de leitura das notas. Estávamos diante dos padres e do Arcebispo e Pe. Raulino passava à leitura das notas e da situação dos três primeiros colocados em cada série. Dom Joaquim tinha a atenção aguçada para cada nota em latim, então a pedra mais preciosa na formação do futuro sacerdote. Quando esta estava um pouco baixa no contexto geral, escrevia uma carta ao Reitor, chamando-o à atenção.

Azambuja perdeu muito com a saída do Pe. Raulino em 1971, para assumir a direção do Jardim Botânico no Rio. Ele se constituía para nós num símbolo. Em dois anos o Seminário perdia três de seus mais tradicionais e competentes professores: Pe. Raulino, Pe. Valentim Loch, Pe. Ney Brasil Pereira.

A pesquisa botânica e o Herbário Barbosa Rodrigues

Cursava o segundo ano de filosofia em São Leopoldo, em 1938, quando começou a nascer o grande botânico. Pe. Pio, capelão da Penitenciária de Porto Alegre, gostava de aviar chás para os presos. Os alunos de São Leopoldo iam pelo mato catar ervas medicinais. Raulino não se contentava em juntar plantas: buscava saber o nome, a família, o sistema de propagação, sua história. Aprendeu a técnica de “herborizar”: coletar um exemplar com folha, flor, fruto, se possível a raiz, depois prensar e secar, para que a amostra não se desnaturasse. A primeira planta que herborizou foi uma avenca, tipo erva-de-passarinho.

Em 22 de junho de 1942, em seu quarto no Seminário Central de São Leopoldo, com a assistência dele mesmo, fundou o “Herbário Barbosa Rodrigues”, nome dado em homenagem ao botânico brasileiro Barbosa Rodrigues, no centenário de seu nascimento. Era constituído de seis caixas de papelão e uns quinze livros. Inicialmente foi um Herbário ambulante. Recém-ordenado, levou-o para Turvo. Em Sombrio, a Casa Paroquial é muito pequena: guarda-o num puxado de madeira, em cima da baia dos cavalos. Em 1946 transportou-o para Itajaí: já possuía 1.500 plantas herborizadas. Dali não sairá mais. Em 1953, com a doação do terreno, construiu a sede do Herbário: ampla, confortável, na Avenida Marcos Konder.

Hoje o Herbário reúne mais de 96% das espécies de plantas existentes no território de Santa Catarina e Estados limítrofes. Ali são encontradas, à disposição da ciência, 42.354 plantas arquivadas exsicatas (secas e conservadas) da flora catarinense e outras 11.000 de Estados vizi­nhos.

É o começo e base para trabalhos relacionados com as plantas e destinados aos objetivos alimentícios, medicinais, corantes, inseticidas não prejudiciais, fibras industriais, etc. “Todas as plantas são potencialmente úteis”, dizia Pe. Raulino.

Para a coleta das plantas, Pe. Raulino dividiu o Estado em áreas, criando um método próprio, depois imitado na Argentina e no Peru.

O Projeto FLORA, do 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, foi todo ele calcado no Plano de Coleta executado por ele de 1948 a 1964. Como Diretor do Jardim Botânico estendeu o mesmo Plano para os então Estados da Guanabara e Rio de Janeiro.

Como botânico, Pe. Raulino coletou e herborizou 28.769 plantas. Des­cobriu para a ciência cerca de 350 espécies novas e descreveu 6 novos gêneros de plantas. Percorreu mais de 1 milhão de quilômetros em 953 excursões botânicas durante 50 anos.

Como extensão prática do Herbário, fundou e implantou, em 1961, o Parque Botânico do Morro do Baú, Município de Ilhota, com 750 hectares.

Padre e pesquisador

Em 20 de março de 1948, Dom Joaquim recebeu carta do Pe. Raulino com um pedido que logo mereceu as bênçãos episcopais: “Há muitos anos venho anotando observações sobre a rica flora catarinense. Possuo alguns trabalhos inéditos, elaborados durante as férias e outras horas de descanso. Como não há revista própria, em nosso Estado, para publicar tais assuntos, peço licença a V. Excia. Revma. para publicá-los num pequeno anuário, que poderia ser o órgão do Herbário “Barbosa Rodrigues”, de Itajaí. O Pe. Balduíno Rambo SJ, competente escritor botânico de Porto Alegre, … muito me incentiva para esta iniciativa. … A Imprensa Oficial executará os trabalhos gráficos, sem ônus de minha parte. Com ansiedade aguardo as ordens de V. Excia. Revma., que serão sempre fielmente cumpridas”.

Assim nasceu a revista botânica SELLOWIA que lançou no decorrer destes anos 38 volumes, com 6.715 páginas, 182 artigos, 1.460 figuras, 8 gêneros novos, 210 espécies novas. Depois nasceu a SELLOWIA – série ZOOLOGIA, da FATMA, da qual editou dois volumes, 268 páginas, 2 artigos, 75 figuras.

Pe. Raulino tornou-se conhecido e reconhecido. Leoberto Leal, Secretário da Viação de Obras Públicas de SC, escreveu a Dom Joaquim em 21 de junho de 1949: “…é o Pe. Raulino Reitz um técnico de reconhecida competência no campo da Botânica… nome já conhecido, como o é, nos meios científicos do país e do exterior. Seria da máxima utilidade o trabalho que o Revmo. Pe. Raulino Reitz poderá executar no cargo de Naturalista do Acordo Florestal entre o Ministério da Agricultura e o Estado de SC. …”. Nestas ocasiões ingratas, Dom Joaquim respondia através do Pró-Vigário Geral dizendo “não”: não há possibilidade de encontrar um professor substituto em Azambuja! Entre o Estado e o nível de estudos do Seminário, o Arcebispo ficou com este último. E Pe. Raulino obedeceu sem nenhuma insistência mais. Perdeu um ordenado oferecido de mais de 3 contos de réis que muito o ajudaria, mas ganhou liberdade e bênçãos para suas pesquisas.

De 1949 a 1951 Pe. Raulino colaborou ativamente nas pesquisas fitossanitárias realizadas em Santa Catarina. Aqui se instalou o Instituto de Malariologia para erradicar a malária no Sul do país. O Governo consultou o Smithsonian Institut de Washington para que indicasse um especialista. De lá indicam: “O melhor mora ali mesmo, no Seminário de Azambuja”.

Neste trabalho, Pe. Raulino iniciou grande amizade com o pintor e desenhista gaúcho Domingos Fossari, e o cientista Roberto Miguel Klein, que daí em diante o acompanharam em todos os trabalhos.

Recebeu o cognome de “Padre dos Gravatás” por seu estudo de todas as Bromélias. Pe. Raulino ficou com a parte sistemática, Roberto Klein com a ecologia e a dinâmica da planta, e Fossari com os desenhos.

Fruto destas pesquisas, em 1951 nasceu o livro “Bromeliáceas e a malária – Bromélia Endêmica”. Como fora prometido, bateu às portas do Governo para a publicação. A resposta é muito simples: “Não há verbas”. Em 1955 tentou recursos na Alemanha: não conseguiu. Este livro, definitivo em seu campo, saiu apenas em 1984, às expensas do autor: são 808 páginas, 140 estampas e 106 mapas. Uma espera de 29 anos.

Estudar a flora catarinense

Pe. Raulino não desanimou com a palavra não honrada do Governo para a publicação. Anos depois disse que fez o seguinte raciocínio: tinha a experiência no estudo de uma família de plantas em SC, as Bromeliáceas. Faltava estudar somente mais 223.

Portanto, mãos à obra! E o Estado de SC foi todo palmilhado pelo pesquisador, município por município. Uma pesquisa com um milhão de quilômetros no Brasil e além fronteiras, de avião, a pé, de charrete, de Jeep, de barco, de trem, de navio, de moto, de bicicleta.

Assim formou-se a base científica para sua grande obra, única no gênero no Brasil: a Flora Ilustrada Catarinense. Em sua vida a enciclopédia botânica Flora Ilustrada Catarinense alcançou 149 volumes, 12.489 páginas, 2.760 es­tampas, 1983 mapas, 149 famílias, 734 gêneros, 3.333 espécies, 237 variedades e 33 formas.

Em suas viagens pelo mundo, além dos passeios e estudos, procurou os colaboradores para os artigos da Flora. Dias antes de morrer, Pe. Raulino pedia mais 10 anos de vida para completá-la. De alguém que ultrapassou a casa dos 70, querer estudar até os 80 só se pode dizer: resumiu a vida no trabalho.

No decorrer dos preparativos para as comemorações do Centenário de Brusque, em 1960, começou a organizar o “Museu Arquidiocesano Dom Joaquim” a ser instalado no antigo prédio do Seminário de Azambuja. Saiu pelo Estado coletando o acervo: plantas, animais, minerais, armas, imagens, documentos, história… Tudo pronto, o Museu foi inaugurado em 1960, sendo seu Diretor até 1978. Grande parte da iconografia religiosa do imigrante catarinense foi salva graças aos seus esforços. Numa época em que imagens esculpidas a facão eram jogadas na sacristia ou nos depósitos, foi importante reuni-las no Museu. Quem sabe, hoje, com uma maior consciência histórica da parte das pequenas comunidades, elas façam falta para o povo, mas foram preservadas por Pe. Raulino.

Reconhecimento pelo trabalho

“O que importa na vida não é ser, nem ter, nem poder. O que importa é fazer, realizar em proveito da Comunidade”, afirmou em 4 de outubro de 1974, na outorga do título de Cidadão Honorário do Estado da Guanabara. De 1971 a 1975, foi Diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que só perde em tamanho e importância para o da África do Sul. Sobre seu trabalho, basta citar as palavras: “O mais dinâmico de todos os diretores parece ser o Pe. Raulino Reitz… Submeteu ao novo Conselho Administrativo um plano de reforma de grande alcance. … Através da implementação destes propósitos… o Jardim Botânico se tornará uma das maiores realizações criativas do homem, transformando 341 hectares de terra ao redor de uma antiga fábrica de pólvora em um modelo de ciência, beleza e paz” (in AMÉRICA, Washington, vol. 24, p. 50, maio de 72). Sob sua orientação, pela primeira vez, em 160 anos, o Jardim Botânico realizou uma pesquisa que já deveria ter sido feita: o estudo das plantas da Guanabara e do Rio de Janeiro.

Partindo para o Rio, Pe. Raulino escreveu uma “Mensagem de Despedida”, em 16 de maio de 1971, onde diz: “No Rio de Janeiro exercerei um duplo sacerdócio: o da ciência e o da religião, dando um testemunho de fé e de trabalho”.

Dr. Adelmar Coimbra, Russell Coffin e Pe. Raulino Reitz na Reserva Caraguatá, em Antônio Carlos – 1990
Dr. Adelmar Coimbra, Russell Coffin e Pe. Raulino Reitz na Reserva Caraguatá, em Antônio Carlos – 1990
Para a preservação do meio ambiente

Pe. Reitz iniciava a caminhada de aplicação de seus conhecimentos botânicos, zoológicos e naturais em benefício da comunidade catarinense. É autor da minuta do Decreto que criou a Fundação de Amparo à Tec­nologia e o Meio Ambiente (FATMA), onde permaneceu como fundador, diretor e pesquisador de 1976 até 1986, quando foi transferido para a EMPASC.

Escreveu dois livros, em colaboração com o ex-aluno e cientista Dr. Ademir Reis, indicando espécies nativas para um reflorestamento adequado para SC e o RS: “Projeto Madeira de SC – 1978” e “Projeto Madeira do Rio Grande do Sul- 1983” .

Idealizou e promoveu as atividades de criação e implantação do Par­que Estadual da Serra do Tabuleiro (1975), Parque Estadual da Serra Furada (1980), Reserva Biológica do Sassafrás (1977), Reserva Biológica Estadual da Canela-Preta (1980), Reserva Biológica Estadual do Aguaí (1983).

Além disso, idealizou e promoveu as atividades de criação das Estações Ecológicas dos Carijós (Ilha de SC), dos Timbés (Timbé do Sul e Meleiro), Babitonga (Garuva, Joinville, Araquari e São Francisco).

Muitos anos antes do surgimento de certa ecologia histérica e festeira, Pe. Raulino lançava as bases científicas para a ecologia em Santa Catarina: estudara a natureza, os mangues, as dunas, as plantas, tudo.

Merecidamente é reconhecido como Patrono dos Ecologistas Catarinenses.

No discurso de Abertura do 26º Congresso Nacional de Botânica, em 26 de janeiro de 1975, afirmara: “Os botânicos não podem se recolher em torres de marfim estudando tecnicamente as plantas e ficar omissos ante a ação indiscriminada contra os pulmões verdes do mundo e de nossa belíssima paisagem”. Conclamava todos a fazerem o que ele já realizava: colocar a ciência a serviço das causas da comunidade humana.

Prêmio Global 500 da ONU

O reconhecimento internacional por esta sua luta veio em 1990 quan­do, no Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de julho, na Cidade do México, recebeu o Prêmio GLOBAL 500 da ONU. Este Prêmio foi estabelecido em 1987 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em 10 anos (1987-1997) receberam o Prêmio os 500 ambientalistas mais destacados do mundo. Recebeu-o juntamente com seu amigo e colaborador, Dr. Roberto Klein.

Como é do seu feitio, foi e voltou silenciosamente. Não havia Câmeras de TV para recebê-lo em alguma sala VIP. Na véspera do Prêmio, na TV ECO da Cidade do México, declarou: “Se o mundo está contaminado e gravemente agredido seu patrimônio cultural, … o homem, fatalmente, de uma ou de outra forma, está doente…”.

Pe. Raulino concretizou esta sua preocupação com o homem em três campos: Botânica, Zoologia, História. Como Zoólogo trabalhou na restauração da fauna desaparecida na Baixada do Massiambu, em Palhoça; 40 espécies de mamíferos e aves foram reintroduzidas.

Como historiador escreveu “Paróquia de Sombrio – Ensaio de uma Monografia Paroquial”, em 1948, “Frutos da Imigração”, 1963, “Alto Biguaçu” (1988). E se empenhava agora em pesquisar a colonização alemã em São Pedro de Alcântara. Andava pelos morros de Santa Bárbara buscan­do informações, datas, entrevistando velhos. Três dias antes de sua morte falei com ele e me mostrava o entusiasmo pela descoberta da data do início da estrada Florianópolis-Lages, no século XVIII. Achou a inscrição numa pedra. E andava atrás de uma foto do Arcipreste Paiva. Dessa pesquisa nasceu o livro “Santa Bárbara – primeiro Núcleo da colonização alemã em Santa Catarina”, publicado postumamente pela Editora da UFSC. Era assim o Pe. Raulino: mansinho, devagar e sempre, alcançava seus objetivos.

Foi Sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e, a 11 de outubro de 1990, foi eleito para a Cadeira No 7 da Academia Catarinense de Letras.

Não creio que seja necessário no espaço desta pequena memória citar as distinções que recebeu, as viagens ao redor do mundo (que depois descreveu em ótimas crônicas), as Sociedades Científicas a que pertenceu, os Congressos de que participou, as Caravanas Científicas, etc. Tudo isso já foi publicado e comentado.

Observações finais

Pe. Raulino viveu como sacerdote católico romano. Gostava de ser padre cientista, e não cientista padre. Encarou a ciência como um meio de exercer o ministério. Foi um agente de evangelização no contato com tanta gente da Ciência pelo mundo, no contato com as pessoas humildes a quem consultava e instruía. Era sempre alguém da Igreja que estava falando. Manifestava a ligação entre a cultura e a fé cristã, o que foi de uma importância enorme. Lembro-me do discurso que pronunciou em Azambuja no Jubileu de Prata Sacerdotal, em 7 de setembro de 1968: dizia aproximada­mente o seguinte: “Não tive ocasião de realizar muito o trabalho pastoral, pois dediquei-me mais à pesquisa. Apesar disso, para mim o mais importante e o que mais me alegra é ser padre. Muito mais importante é ser padre, e depois cientista”.

Não se envolveu nas grandes questões eclesiais, especialmente após o Concílio do Vaticano 11 (1962-1965). Vivia sua fé e fidelidade à Igreja com simplicidade, sem se preocupar com os problemas eclesiais da atualidade. Talvez isso lhe deu mais paz.

Era fascinado pelo ideal do “progresso” alcançado pelo trabalho humano.

Não admitia a existência de povos pobres sem a culpa da preguiça. Seu grande totem era a América do Norte, país da ciência, da indústria, do progresso. Quando esteve estudando na Universidade de Ames, Iowa, em 1955, onde foi classificado com a nota 99, primeiro lugar entre 45 alunos, recebeu de Dom Joaquim uma cartinha que o estimulava a ir à Europa: “Os Estados Unidos são o País do Progresso. A Europa é o Tesouro da Tradição!”. Claro que Pe. Reitz foi à Europa: tinha lá um bocado de botânicos para contatar…

Este ideal fez desenvolver nele algum preconceito étnico, adotando uma visão muito otimista dos anglos e teutos. Isso aparece bem claro em seus livros históricos, onde o alemão aparece como “superior”, que vence pela inteligência e pelo trabalho. São condicionamentos humanos que já nascem no Alto Biguaçu, sua terra natal, numa colônia alemã. Lá aprendera a olhar os “brasileiros” como inferiores. E ainda se aprende, infelizmente.

Politicamente, Pe. Raulino via com bons olhos os regimes de autoridade forte e centralizada. Podemos buscar a origem dessa simpatia nos anos 30. Sua família era entusiasta do Integralismo, de Plínio Salgado. Seu pai foi enterrado em grande estilo, com bandeira integralista e bandeira nacional cobrindo o esquife, braços erguidos ao grito de “Anauê”. No túmulo, o símbolo do Sigma. Em 1945, com a volta da democracia, os ex-camisas-verdes filiaram-se à UDN, partido que não primou pela visão democrática do Estado. Pe. Raulino sempre foi udenista. Natural que pelo seu estilo de vida regrado, trabalho incessante, busca de progresso, um regime político mais forte exercia mais atração.

A despedida de um homem simples e amigo

A imagem que Pe. Raulino deixou nos que o conheceram e admiraram é a de um homem simples, calmo, atencioso, satisfeito com a vida. Nunca buscou a fama, a badalação social. Não foi tocado pela vaidade humana, mesmo em meio a tanto reconhecimento pelo seu trabalho. Parecia não saber o que ele próprio significava para o mundo da ciência. Impressionava pelo número de projetos que conseguia tocar simultaneamente. Uma vida, por mais longa que seja, é sempre muito curta para uma obra tão vasta. Foi um homem de método: sabia o que queria e perseverou sempre. Só isso explica como aos 70 anos tenha feito tanto, em áreas tão diferentes, e ainda dar a impressão de um homem que tem tempo para um bate-papo, uma cerveja, um churrasco. Tudo com muita calma.

Pe. Raulino honrou a vida humana, a fé, a Igreja e o sacerdócio católico.

Em 1985, recebeu duas pontes de safena no Beneficência Portuguesa de São Paulo. Sofreu uma ameaça de Mal de Parkinson, debelada.

Foi em Itajaí, durante uma homenagem que lhe prestava a Câmara de Vereadores, que o coração parou fulminantemente. Em poucas horas foi declarado morto. Era o dia 20 de novembro de 1990. No dia seguinte, às 10:00 horas, foi sepultado ao lado da igreja matriz de Antônio Carlos, no mesmo local onde fora coroinha, rezara e celebrara a Primeira Missa. Ali aguarda o dia da Ressurreição. Pouco depois, em 13 de novembro de 1992, falecia também Dr. Roberto Miguel Klein, criando grande vazio nos trabalhos do Herbário.

Numa vez, comentando com uma jornalista o perigo que passava numa viagem de avião, rumo a Lima, respondeu: “Medo de morrer? Não. Procuro ter calma. O dia que a morte vier, será bom!”.

Pe. José Artulino Besen

Arquidiocese de FlorianópolisCleroPe. Raulino Reitz

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