Conhecendo o livro dos Salmos – 135 (134) – Por Pe. Ney Brasil

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Conhecendo o livro dos Salmos – 135 (134) – Por Pe. Ney Brasil

pe_ney_brasil_pereiraComo é sabido, o vocábulo originalmente hebraico, “aleluia”, de fato não é uma palavra, ou substantivo, como se tornou em português, mas uma frase completa, com verbo e complemento.  De fato, o vocábulo é formado de “alelú”, em hebr. hallelû, isto é, “louvai” e “iá”, em hebr. yah, que é a primeira sílaba do nome divino Yahweh, que se traduz como “o Senhor”. Portanto, o significado de “aleluia” é um convite: “Louvai o Senhor”, como aliás o explicita a primeira metade do primeiro versículo deste salmo, conclamando: “Aleluia! Louvai o nome do Senhor!” Quanto ao “nome”, aí, não é o “nome” como tal, mas a pessoa, o próprio ser de Deus.

            O convite inicial a louvar, explicitado duas vezes no primeiro versículo, indica com clareza que este salmo é um “hino”, isto é, uma composição poética que exalta as qualidades, o poder de Deus, identificado aqui como “o Senhor”, o Deus de Israel, e suas realizações grandiosas na natureza e na história. O salmo é abundante em citações literais ou levemente adaptadas, de outros salmos e outros textos. A idolatria parece tranquilamente superada. Menciona-se a cidade santa e o monte do templo, já reconstruído. Não se alude a algum rei; sacerdotes e levitas desempenham papel importante. O mais provável é que este salmo tenha sido composto depois do Exílio, isto é, depois do séc. VI a.C., para ocasiões litúrgicas festivas.

            A estrutura é bem clara: os vv. 1 a 3 constituem a introdução, e os vv. 19 a 21, a conclusão. O corpo do salmo, dos vv. 4 a 18, divide-se em três momentos: 1) os motivos de louvar o Senhor, vv. 4 a 7; 2) três etapas importantes na história do povo de Deus, vv. 8 a 14; 3) crítica radical da idolatria, retomando o Sl 115, nos vv. 15 a 18.

 

Aleluia! Louvai!

  1. Aleluia! Louvai o nome do Senhor, / louvai-o, servos do Senhor.
  2. Vós que estais na casa do Senhor, / nos átrios da casa do nosso Deus.
  3. Louvai o Senhor, pois o Senhor é bom. / cantai hinos ao seu nome,

 que é amável.

O convite a louvar é dirigido aos “servos do Senhor”, provavelmente os sacerdotes e levitas mencionados no fim do salmo (“casa de Aarão”, “casa de Levi”, vv. 19 e 20). Eles se encontram na “casa do Senhor”, isto é, no próprio Templo: quer dentro dele, quer nos seus “átrios”, isto é, nos pátios ou vestíbulos. No v. 3, duas motivações do louvor: porque “o Senhor é bom”, e louvá-lo é “prazeroso” e “amável”. É interessante notar que estes dois adjetivos – “bom” e “prazeroso” – aparecem no começo do salmo anterior, qualificando outra realidade: é bom e prazeroso “os irmãos viverem juntos” (Sl 133/132,1).

O Senhor é grande, e nos escolheu!

  1. Pois o Senhor escolheu para si Jacó, / fez de Israel a sua propriedade.
  2. Sei que o Senhor é grande, / nosso Deus está acima de todos os deuses.
  3. O Senhor realiza tudo quanto quer no céu e na terra, / no mar

 e em  todos os abismos.

  1. Faz as nuvens subir dos confins da terra, / faz os relâmpagos para a chuva,

/ tira os ventos de seus reservatórios.

Explicitam-se agora os motivos do louvor. Primeiro, porque Deus escolheu-nos (“Jacó e Israel” são nomes que designam a comunidade) como seu povo, “para si” e “sua propriedade”. Sobre o ser de Deus, o salmista pessoalmente, em seu próprio nome – “eu  sei” – afirma a sua “grandeza” e  sua superioridade, “acima de todos os deuses”. Finalmente, proclama a sua onipotência, o seu domínio cósmico: no céu, na terra, no mar e nos abismos (quatro âmbitos), e nas nuvens, relâmpagos, chuva, e ventos (quatro elementos). Notar que o número “quatro”, na mentalidade judaica, indica a totalidade espacial, p. ex. dos quatro cantos da terra.

As pragas do Egito e o Êxodo

  1. Foi ele que feriu os primogênitos do Egito, / desde os homens até os animais.
  2. Mandou sinais e prodígios no teu meio, ó Egito, / contra o Faraó

e todos os seus ministros.

Do Êxodo não se menciona seu ponto culminante, a travessia do mar Vermelho, mas somente os “sinais e prodígios” que a precederam, destacando-se a última “praga”: a da morte dos primogênitos. Fatos tão remotos no tempo são de certo modo atualizados pela apóstrofe ao Egito (v.9), interpelado pelo salmista como se agora, sob a chefia “do Faraó e de seus ministros”, estivesse oprimindo os hebreus. É estranho, porém, que não se mencione a celebração da Aliança no monte Sinai.

Feriu nações e matou reis

  1. Foi ele que feriu numerosas nações e matou reis poderosos:
  2. Seon, rei dos amorreus, / Og, rei de Basã, / e todos os reis de Canaã.

Dois versículos sintetizam a caminhada pelo deserto, atribuindo ao próprio Deus a condução da “guerra santa” contra “numerosas” nações e “poderosos” reis que, naturalmente, não queriam permitir a passagem daquele povo intruso. Além de “todos os reis de Canaã”, são citados nominalmente, como mortos pelo próprio Senhor, o “rei dos amorreus”,  Seon (cf Dt 2,26-37) e o “rei de Basã”, Og (cf Dt 3,1-11).

E deu as terras deles

  1. E deu as terras deles como herança, / como herança a Israel, seu povo.

Segundo o salmista, Deus age sem olhar os “direitos adquiridos” dos então moradores da terra. E, como dono absoluto de tudo, então também das terras dos povos, Ele as dá, “como herança”, “a Israel, o seu povo”. É  o mistério das escolhas divinas, que suscitam em nós a pergunta: por que, em benefício de Israel, o povo “escolhido”, esses outros povos são “feridos” pelo Senhor e esbulhados de suas terras? Por sua vez, o apóstolo Paulo, na carta aos romanos, se defronta com o mistério contrário, o da rejeição de Israel e da acolhida dos pagãos, e se pergunta: “Haveria, porventura, injustiça em Deus? De modo algum. Pois Ele disse a Moisés: Farei misericórdia a quem eu quiser e terei piedade de quem eu quiser!

Teu nome, tua lembrança

  1. Senhor, teu nome é para sempre; / Senhor, tua lembrança permanece

 por todas as gerações.

Além da função designativa, o “nome” pode significar a pessoa, a presença, o ser de Deus. O templo de Jerusalém, p.ex., é o lugar onde “mora o nome do Senhor” ou, simplesmente, “o Nome”, com maiúscula, designando o próprio Deus. “Lembrança” é a permanência da presença, permanência que é negada aos maus, pois “sua lembrança desaparece da terra (Jó 18,17), mas é garantida aos bons: “a memória do justo é abençoada” (Pr 10,7), ou seja, perdura para sempre. Se é assim a lembrança dos justos, quanto mais a do Senhor!

O Senhor faz justiça

  1. O Senhor faz justiça a seu povo, / tem compaixão de seus servos.

“Faz justiça”, aqui, tem pelo menos dois significados: Deus “julga”, e ao mesmo tempo “governa”, o seu povo, isto é, “reina” sobre ele. E “tem compaixão”, uma compaixão que ameniza o divino julgamento.

Ídolos e idólatras

  1. Os ídolos das nações são prata e ouro, / feitos por mãos humanas:
  2. têm boca e não falam, / têm olhos e não veem;
  3. têm ouvidos e não ouvem, / a boca deles não respira.
  4. Sejam como eles os que os fabricam / e todos os que neles confiam.

Num contraponto ao louvor de Deus, temos aqui a condenação dos ídolos e dos idólatras e, também, dos que “fabricam” os ídolos. É  a insistente  condenação do Antigo Testamento ao reconhecimento de outros deuses, representados e venerados  em ídolos “de prata e ouro, feitos por mãos humanas”, transgredindo o segundo mandamento do Decálogo: “Não farás para ti imagem esculpida… não te prostrarás diante delas… pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento” (Ex 20,4-5). O autor deste salmo retoma o  que já fora dito pelo Sl 115,4-8, ridicularizando a impotência dos ídolos e a insensatez dos que os adoram, os idólatras. É sabida a crítica que nos fazem nossos irmãos protestantes, tachando a nós, católicos, de “idólatras”, por causa da nossa veneração das imagens. Mesmo reconhecendo que eles, os “evangélicos”, são injustos em relação a nós, por outro lado não podemos deixar de reconhecer que há certas coisas erradas em nossa religiosidade popular, que não deveriam ser incentivadas. Por fim, não nos esqueçamos da advertência final da 1ª carta de São João: Filhinhos, guardai-vos dos ídolos! (1Jo 5,21)

Israel, Aarão, Levi, vós que temeis o Senhor!

  1. Bendizei o Senhor, casa de Israel; / bendizei o Senhor, casa de Aarão;
  2. Bendizei o Senhor, casa de Levi; / vós que temeis o Senhor, bendizei o Senhor,

 / que habita em Jerusalém.

Como no Sl 115,9-13, contrapondo-se aos que equivocadamente confiam nos ídolos, o salmista se dirige agora aos que “temem a Deus”, distinguindo entre a “casa de Aarão”, os sacerdotes, e a “casa de Levi”, os levitas. E a todos conclama para que “bendigam” o Senhor, isto é, que o louvem, proclamando-o “bendito”. A propósito, é um louvor desinteressado, que não se desdobra em pedidos.

Seja bendito o Senhor!

  1. De Sião seja bendito o Senhor, / que habita em Jerusalém. Aleluia!

Por duas vezes (v.20 e v.21) se afirma que o Senhor “habita em Jerusalém”, isto é, no seu Templo, de onde sobem a Ele as “bênçãos” do povo que O louva. No evangelho segundo João, o Templo definitivo, no qual Deus habita em plenitude, é o corpo de seu Filho: “Destruam este Templo… Ele falava do Templo do seu corpo” (cf Jo 2,19.21). E o apóstolo Paulo, por sua vez, vai revelar-nos que nós mesmos, cada um de nós, é templo de Deus: “Não sabeis que vós sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1Cor 3,16). No fim do versículo, como resumo de todo o salmo, o “Aleluia”, isto é, “louvai o Senhor!”

Pe. Ney Brasil Pereira

Professor emérito de Exegese Bíblica do ITESC

Email: [email protected]

Para refletir: 1) Que significa o vocábulo “aleluia”? A quem é dirigido o convite a louvar?  2) Quais os motivos do louvor, expressos pelo salmista?

            3) Como explicar que Deus tenha dado a seu povo as terras já habitadas por outros povos?  4) É ainda atual a advertência contra os ídolos e a idolatria?

         5) Em que sentido Deus habitava no Templo? Qual é o Templo definitivo?

Artigo publicado na edição de fevereiro/2017, nº 231, do Jornal da Arquidiocese

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