Conhecendo o livro dos Salmos – 104 (103) – Por Pe. Ney Brasil

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Conhecendo o livro dos Salmos – 104 (103) – Por Pe. Ney Brasil

Salmo 104(103): A Glória do Criador

 

Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.
Todo mês, no Jornal da Arquidiocese, você confere a reflexão do Salmo pelo Pe. Ney Brasil Pereira.

Como o salmo precedente, também este começa, e termina, com o convite a bendizer a Deus, que o salmista faz a si mesmo. O convite é breve, e logo ele prorrompe numa exclamação entusiasmada, semelhante à do Salmo 8º, proclamando a grandeza do Deus Criador, assim como o Salmo 103 proclama a sua misericórdia, e o Salmo 99 a sua santidade. Nova exclamação voltará no v. 24, exaltando as “numerosas” obras do Senhor.

Os pesquisadores encontram no “Hino ao Sol”, do faraó egípcio Akenáton, do séc. XIV aC, a fonte literária de inspiração para este salmo. Como quer que seja, seu autor tem a mesma cosmovisão, fundamental, do primeiro versículo do livro do Gênesis: No princípio, Deus criou o céu e a terra (Gn 1,1). Tudo, todas as coisas, todas as criaturas, são reveladoras da glória do Criador. Aqui, porém, elas  não são convidadas a louvar, como pedia o final do salmo precedente (cf Sl 101,20-22) ou como o fará o Salmo 148. O próprio salmista é quem louva, fazendo-se  porta-voz dessas criaturas e retomando, a seu modo, a narrativa da criação.

Após exaltar a grandeza de Deus no céu (vv. 1b-4), ele volta-se para a terra e tudo o que há nela, especialmente o ser humano (vv. 5-24). Passa em seguida ao mar (vv. 25-26) e ao sustento e renovação dos seres vivos (vv. 27-30). No final (vv. 31-34),  espera que seu poema agrade ao Senhor e compromete-se a continuar louvando-o “enquanto viver”.

Como és grande!

  1. Bendize, minha alma, ao Senhor! Senhor, meu Deus, és imensamente grande! / Revestido de majestade e de esplendor,
  1. envolto em luz como num manto. Tu estendes o céu como uma tenda,
  1. constróis sobre as águas tua morada, / fazes das nuvens teu carro, / passeias sobre as asas do vento;
  1. fazes dos ventos teus mensageiros, / das chamas de fogo, teus ministros.

A criatividade poética do salmista, dentro da cosmologia do seu tempo, multiplica as imagens: a do “manto de luz” que envolve o Senhor, a do céu como “tenda estendida”,  a morada de Deus sobre “as águas superiores”, as nuvens como carruagem,

o vento (seria o de Gn 1,2?) como um querubim alado, os ventos como portadores de recados, as chamas de fogo dos relâmpagos como executoras de suas ordens.

As águas e a terra

  1. Firmaste a terra sobre suas bases, / para que fique inabalável pelos séculos eternos.
  1. Com o oceano a envolveste como num manto, / as águas assaltavam as montanhas.
  1. À tua ameaça fugiram, / ao fragor do teu trovão tremeram.
  2. Subiram os montes, desceram os vales / ao lugar que lhes determinaste.
  3. Para as águas marcaste um limite intransponível, / para não tornarem a cobrir a terra.

No terceiro dia de Gn 1, dá-se a separação entre os elementos do caos: emerge a terra entre as águas, que a envolvem: como o Senhor se veste de luz (v.2), a terra se veste do oceano (v.6). À tentativa rebelde de voltar a encobrir a terra, a “ameaça” do Senhor faz as águas retirarem-se para seu lugar, nos vales e dentro do “limite intransponível” das praias. No v. 9, uma alusão ao dilúvio, que nunca mais haveria de devastar a terra (cf. Gn 9,8-17).

As fontes nos vales

  1. Fazes brotar as fontes nos vales / e elas escorrem entre os montes;
  2. Dão de beber a todas as feras do campo / e os asnos selvagens matam sua sede.
  1. Junto a elas moram as aves do céu, / cantam entre as ramagens.

Com prazer descreve o salmista a paisagem bucólica povoada de “feras do campo” e “asnos selvagens” dessedentando-se nas fontes que brotam e escorrem pelos montes, sem esquecer as “aves que cantam” nas ramagens… Notar que as  fontes não brotam espontaneamente: é o Senhor, atuante na sua obra, quem as faz brotar.

Os frutos da terra

  1. De tuas altas moradas irrigas os montes, / com o fruto das tuas obras                                           sacias a terra.
  1. Fazes crescer o feno para o gado, / e a erva útil para o ser humano,/ para que tire da terra o seu pão:
  1. O vinho que alegra o coração humano, / o óleo que realça o brilho do rosto / e o pão que sustenta o vigor.

Também os frutos da terra, é o Senhor quem os dá. Dá até “o pão, o vinho e o óleo”, embora manufaturados pelo ser humano. É Ele quem faz crescer o feno, da gleba irrigada pela chuva: esta, enviada de suas “altas moradas” pelo próprio Deus.

Árvores e montanhas

  1. Enchem-se de seiva as árvores do Senhor, / os cedros do Líbano que ele plantou.
  2. Lá os pássaros fazem ninhos / e a cegonha no seu topo tem sua casa.
  3. Para as cabras são as altas montanhas, / as rochas são refúgio para os roedores.

Aparecem agora as árvores, entre as quais “os cedros do Líbano”, que Deus plantou, não o homem. Novamente com prazer menciona o poeta “os pássaros com seus ninhos”, com menção especial para a cegonha. Não são esquecidas as cabras, nas montanhas, nem os roedores, nas rochas.

A lua e o sol

  1. Fizeste a lua para marcar os tempos / e o sol, que sabe a hora de se pôr.
  2. Estendes as trevas e chega a noite / e vagueiam todas as feras da floresta;
  3. Rugem os leões em busca da presa / e pedem a Deus seu alimento.
  4. Quando fazes o sol nascer, retiram-se / e se escondem nas suas tocas.
  5. Então, sai o homem para o trabalho, / para sua fadiga até a tarde.

O poeta menciona agora a lua e o sol, sem insistir nas qualidades do “astro-rei”, apresentando lua e sol claramente como criaturas: o Senhor é quem os fez, cada um com a  sua função, como se lê em Gn 1,14-19, na obra do quarto dia. A noite é reservada para as feras, nomeadamente os leões, enquanto o dia, “quando fazes o sol nascer”, é oportuno para o trabalho humano.

Tudo com sabedoria

  1. Como são numerosas, Senhor, as tuas obras! / Tudo fizeste com sabedoria, a terra está cheia das tuas criaturas.

Entusiasmada expressão de assombro do salmista diante da beleza da obra criadora. O Sirácida, no seu livro, vai desenvolver amplamente essa experiência (cf Eclo 42,15—43,37). Aqui o salmista resume: “Tudo fizeste com sabedoria”,  sabedoria que é o “know-how” divino, perfeito em tudo o que faz.

A vastidão do mar

  1. Eis o mar, espaçoso e vasto: nele há répteis sem número, animais pequenos e grandes.
  1. Percorrem-no os navios, / e o Leviatã que formaste para com ele brincar.

O salmo poderia ter terminado no v. 24. Mas o autor prefere continuar, com novos detalhes, que lhe parecem ainda importantes. Assim, retomando Gn 1,10-13, com a obra do 5º dia, depois de acentuar a “imensidão” do mar, destaca, além dos peixes, os navios, obra humana, e o Leviatã, monstro marinho, com o qual Deus se diverte. Isto é, longe de ser um monstro mitológico aterrorizante, o Leviatã é um brinquedo de Deus.

Envias teu Espírito

  1. Todos de ti esperam / que a seu tempo lhes dês o alimento.
  2. Tu lho forneces e eles o recolhem, / abres a tua mão e saciam-se de bens.
  3. Se escondes teu rosto, desfalecem; / se a respiração lhes tiras,

morrem e voltam ao pó.

  1. Envias teu Espírito e renascem / e assim renovas a face da terra.

Enquanto o ser humano deve procurar e preparar seu alimento, os animais, todos eles, são alimentados por Deus. É Deus também quem lhes dá seu respiro de vida. E é Deus quem, pelo seu Espírito, faz continuar o ciclo da vida e “renova a face da terra”, palavras que se tornaram, na liturgia da Igreja, a invocação do Espírito Criador.

Alegria e temor

  1. A glória do Senhor seja para sempre, / alegre-se o Senhor com suas obras.
  2. Ele olha a terra e fá-la saltar, / toca os montes, e eles fumegam.
  3. Quero cantar ao Senhor enquanto eu viver, / cantar a meu Deus

enquanto eu existir.

A narrativa da criação, no livro do Gênesis, é permeada da afirmação de que Deus viu que “tudo era bom” (Gn 1,4.10.12.18.21.25.31). O salmista faz votos de que Deus continue a alegrar-se com as suas criaturas, assim como se alegrou ao criá-las. E não se esquece, o salmista, de lembrar que esse Deus, prodigiosamente bom, é também “tremendo”, merecendo portanto, de suas criaturas, o temor reverencial: quando toca os montes, “eles fumegam”…

Não haja mais ímpios!

  1. Seja-lhe agradável meu poema; / a minha alegria está no Senhor.
  2. Desapareçam da terra os pecadores / e não haja mais ímpios!
  3. Bendize, minha alma, ao Senhor!

Há algo, alguém, que perturba a harmonia da criação: os pecadores, os ímpios… o mistério do Mal. Não seria possível reprimir os malvados? Não era tudo bom quando Deus criou o mundo? Não são um corpo estranho os ímpios? Tendo expresso esse voto, essa esperança, o salmista pode voltar a interpelar-se: Bendize, minha alma, ao Senhor! E Deus “agradou-se” tanto do seu poema, que nós ainda hoje o rezamos.

 

Para refletir:

1)  Que pretende o autor com este salmo?  Em  que página da Bíblia ele se inspira?

2) Destaque alguma das imagens que ele usa, nos vv. 2, 3 e 4.

3) O que ele diz da lua e do sol, considerados divindades pelos antigos?

4) De onde vem a invocação do Espírito Santo, que tantas vezes rezamos?

5) Qual o sentido do desejo, expresso pelo salmista, de que “não haja mais ímpios”?

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